Hoje, dia da liberdade, levanto-me um pouco mais tarde do que o habitual. Na sala, o senhor Henrique folheia com ar melancólico os impressos publicitários dos supermercados. Um deles, de pneus, parece despertar-lhe a atenção. “Não saíste para ir até ao café?”, pergunto-lhe. “Não, está a chover desagradavelmente e além disso o senhor Carlos está fechado.” O senhor Carlos é o dono da Casinha do Chocolate, onde o meu pai toma o seu pingo directo todos os dias, de manhã e depois do almoço, e onde tagarela com os sobreviventes. Aparentemente, sempre fiel aos princípios de economia rural transmontana, o senhor Carlos, que é de Ferreiros, não abriu hoje, talvez para poupar a (e na) empregada.

Na televisão da sala discursa o Presidente do Partido Socialista e segunda figura do país, o Doutor Carlos César. De cravo na lapela, ventre já um pouco arredondado, exalta neste momento a revolução, a memória – Mnemosine, a deusa grega do recolhimento e dos sinos – e as virtudes da democracia e da liberdade. Olhamos uns segundos para aquilo, apreciando o sotaque ilhéu do prócere, o seu fato às riscas de belo corte, os arranjos de flores vermelhas, a câmara de televisão que percorre em plano médio os rostos orgulhosos dos deputados das bancadas democráticas. “Vou fazer o almoço,” diz por fim o senhor Henrique, levantando-se do sofá. “Já?”, inquiro. “Ainda nem são onze.” O meu pai nem se digna responder. O almoço é uma coisa que se vai fazendo, eu já devia saber isso. Não há pressas para o meu pai. “Que vamos comer hoje?”, insisto, provocador. “Não sei, vitela estufada. Ou rancho.” “Hoje o rancho parece-me mais adequado,” concluo.