Hoje, é tudo de ontem.

Hoje, dia da liberdade, levanto-me um pouco mais tarde do que o habitual. Na sala, o senhor Henrique folheia com ar melancólico os impressos publicitários dos supermercados. Um deles, de pneus, parece despertar-lhe a atenção. “Não saíste para ir até ao café?”, pergunto-lhe. “Não, está a chover desagradavelmente e além disso o senhor Carlos está fechado.” O senhor Carlos é o dono da Casinha do Chocolate, onde o meu pai toma o seu pingo directo todos os dias, de manhã e depois do almoço, e onde tagarela com os sobreviventes. Aparentemente, sempre fiel aos princípios de economia rural transmontana, o senhor Carlos, que é de Ferreiros, não abriu hoje, talvez para poupar a (e na) empregada.

cravo

Na televisão da sala discursa o Presidente do Partido Socialista e segunda figura do país, o Doutor Carlos César. De cravo na lapela, ventre já um pouco arredondado, exalta neste momento a revolução, a memória – Mnemosine, a deusa grega do recolhimento e dos sinos – e as virtudes da democracia e da liberdade. Olhamos uns segundos para aquilo, apreciando o sotaque ilhéu do prócere, o seu fato às riscas de belo corte, os arranjos de flores vermelhas, a câmara de televisão que percorre em plano médio os rostos orgulhosos dos deputados das bancadas democráticas. “Vou fazer o almoço,” diz por fim o senhor Henrique, levantando-se do sofá. “Já?”, inquiro. “Ainda nem são onze.” O meu pai nem se digna responder. O almoço é uma coisa que se vai fazendo, eu já devia saber isso. Não há pressas para o meu pai. “Que vamos comer hoje?”, insisto, provocador. “Não sei, vitela estufada. Ou rancho.” “Hoje o rancho parece-me mais adequado,” concluo.

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Imortalidade IV

Há qualquer coisa na Rua das Pedrinhas que faz dela a quintessência da famosa Bila. É uma via obscura, perfilada por casas ao abandono, como sentinelas carunchosas, um carreiro por onde passam, faça dia ou faça noite, divindades sepulcrais. O terrível Nyarlathotep e o seu Olho. A Caçada Selvagem, a Wilde Jagt, a Cavalgada de Odin, o som de ossos e de cascos de cavalos a bater no empedrado. Quando a percorro sinto sempre um calafrio. Continuar a ler

O Homem

“No primeiro dia da criação, criou Deus o Céu, e a Terra, e os Elementos, e é certo em boa Filosofia que não ficou nenhum vácuo no Mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as plantas, e as árvores, e com serem tantas em número, e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele imenso Planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a terra, coube também o Sol; vieram no mesmo dia as Estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil léguas, e couberam as Estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam as aves; vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros de disforme grandeza, couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais, tantos e tão grandes à terra, e couberam os animais; finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não caber; mas se não coube no Paraíso, coube fora dele.”

(Padre António Vieira, Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em 27 de Novembro de 1650, in Sermões do Advento, do Natal e da Epifania, ed. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Temas e Debates, 2015, p. 151.)