Uma passagem da Democracia na América, de Alexis de Tocqueville

Em 1831, Alexis de Tocqueville visitou com um seu amigo, Gustave de Beaumont, a ainda jovem República dos Estados Unidos da América. Da experiência dessa viagem, que durou cerca de um ano, e da reflexão sobre o que nela pôde observar, ele haveria de fazer um livro famoso, De la Démocratie en Amérique, publicado em quatro volumes em Paris, no ano de 1835.

Da primeira edição desse livro reproduzem-se, no final deste poste, e em modo fac-símile, as páginas 261 a 268 do segundo tomo, que constituem a derradeira secção do capítulo IX desse volume. Essa secção foi intitulada “Importância do que precede, em relação à Europa”. O leitor amigo é convidado a ler o texto a partir do original francês. Mas, para os que, por falta de familiaridade com a língua do autor, não o puderem (ou quiserem) fazer, apresenta-se igualmente uma tradução portuguesa.

Cada um dos amáveis leitores é convidado a reflectir sobre estas curiosas páginas de Tocqueville. Estou certo de que a nossa comum experiência recente invocará no seu espírito os necessários paralelos. E a ingenuidade do seu último parágrafo um sorriso.

É mais fácil e frequente prever o futuro do que se pensa.


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Pestilência

Que outra realidade é mais propícia do que a actual para recordar o Timão de Shakespeare? Enojado pela perfídia e pela cobardia dos seus contemporâneos, Timão afasta-se de Atenas e vai viver, nu, para o bosque entre as bestas naturais. Não sem antes deitar um último olhar à cidade maldita, que excomunga numa diatribe célebre.

(A tradução é minha. Não sejais severos. Shakespeare é sempre sublime).

Deixa-me olhar-te, enquanto me afasto. Ó muro de pedra,
Que a estes lobos cinjes, mergulha na terra, e a Atenas
Não mais cerques! Mães de família, tornai-vos debochadas!
Crianças, não obedeçais aos vossos pais! Escravos e tolos,
Derrubai das tribunas os graves e venerandos senadores
E ditai vós, em vez deles, as vossas leis! Em prostitutas
Transformai-vos sem tardança, ó virgens inocentes:
E fazei-o à vista dos vossos pais! Insolventes, não pagueis
A quem deveis; puxai cerce das ilhargas os punhais,
E cortai os pescoços aos vossos credores! Criados, roubai!
Os vossos mestres generosos são ladrões respeitáveis,
Que pilham à sombra da lei! Criada, ao leito do patrão,
Que a patroa é uma prostituta! Escravo adolescente, arranca
A bengala amolfadada das mãos do teu idoso dono,
E esmaga com ela os seus miolos! Crença e religião,
Piedade face aos deuses, e paz e justiça e verdade,
Respeito pelos manes, sono descansado, boa vizinhança,
Instrução, maneiras, artes e ofícios e negócios,
Observâncias, prestígio, costumes e decretos,
Fazei com que se fundam em tudo o que é contrário,
E que a confusão reine suprema! Que as pragas
Caiam sobre Atenas, e que esta tombe sob os golpes
De potentes febres infecciosas! E tu, ó gélida ciática,
Aflije os nossos senadores, que as suas pernas lhes
Vacilem como as suas maneiras! Que a libertinagem
E a luxúria penetrem a mente e os ossos juvenis!
Que os jovens resistam e combatam os impulsos da virtude
E se afoguem no deboche! Que as pústulas da sífilis
Marquem os ventres de Atenas, e semeiem uma lepra
Universal! Que hálitos infestem hálitos. Que a amizade
E a convivência sejam puro veneno! Nada teu terei,
Salvo esta nudez, ó cidade entre todas detestável.
Leva-a também, e que esta maldição cresça contigo!
Timão vai para o bosque, e nele encontrará por certo
Animais selvagens bem mais brandos que os humanos!
Os deuses confundam – oiçam-me, ó gentis divindades! –
Os Atenienses, os que habitam dentro e fora deste muro.
E que, enquanto Timão cresce, cresça também
O seu ódio a toda a raça humana, alta e baixa! Amém.

(Shakespeare, Timão de Atenas, acto IV, cena 1.)

O Futuro já chegou

Achais que não se pode prever o futuro? Que o dom da profecia foi uma superstição de rústicos da idade do bronze? Que o Espírito se calou de vez e Deus já não sussurra aos ouvidos dos seus o que Ele quer que os homens saibam? Que já não há Verdade?

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Então lêde esta passagem de Dostoievski, escrita em 1881. O Inquisidor fala com Cristo e descreve-lhe com minúcia exacta o que hoje está a acontecer. E o que vem aí, a galope, pela mão dos zeladores da humanidade, os Grandes Humanistas, o Concílio da Bondade Universal, os Cientistas e os Crentes da Igreja do Bem, o Papa da Roma Pachamama, os Oficiantes da Grande Obediência, os oráculos da Razão Universal, os zurzidores da Superstição e da Diferença, os perseguidores da Matemática, da Metafísica e de Mozart, os promotores da Felicidade e da Segurança e da Igualdade e da Indistinção. E esta vai finalmente estender-se por toda a terra, como um caldo morno e confortável, e o milénio durará exactamente mil anos. Continuar a ler

A Palavra

No semestre de Verão de 1943, Martin Heidegger deu um curso na universidade de Freiburg sobre Heraclito. O curso foi publicado no volume 55 das Obras Completas (Gesamtausgabe). Desse curso, apresentam-se a seguir três parágrafos.

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Dizemos “é” constantemente, mesmo que não o digamos expressamente. Pensamo-lo em todas as formas de cada verbo, em cada nome, em cada apelo e em cada ordem, em cada pedido e em cada saudação. Pensamo-lo sempre e percebemo-lo em todos os lugares e, no entanto, não o entendemos e nunca nele pensamos. Pensamo-lo em todas as reflexões silenciosas, pensamo-lo nas opiniões impensadas, pensamo-lo mesmo aí onde acreditamos que estamos apenas a ”sentir” e a ”experimentar” algo. A palavra de todas as palavras, o éter da linguagem, a palavra que nomeia aquilo em que reside todo o dizer e todo o silêncio, continua até agora a ser para nós o mais inócuo de tudo o que é inócuo. É estranho como o homem é indiferente à palavra que é sempre-já usada, embora nem sempre seja dita, em cada um dos seus pronunciamentos tantas vezes apressados e ruidosos.Heraclitus of Ephesus

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A morte do camareiro Brigge

Eis as entradas 6 a 9 do Caderno de Notas de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke. Descrevem a morte do avô de Malte e de outra gente variegada. E têm dentro, como grãos no âmago de um fruto, certas pequenas coisas, como galgos e mulheres grávidas. Apreciem.

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(6) Tenho medo. Mal o medo chegue, é preciso fazer algo contra ele. Seria muito mau adoecer aqui, e se ocorresse a alguém levar-me para o Hôtel-Dieu, eu certamente morreria. O Hôtel é agradável, muito popular. É quase impossível contemplar a fachada da catedral de Paris sem correr o risco de se ser atropelado por um dos muitos veículos que atravessam, rápidos, a ampla praça que conduz ao Hôtel. Estes pequenos coches estridulam sem cessar, e até o duque de Sagan teria de mandar parar o seu se se metesse na cabeça de um desses pequenos moribundos dever ir imediatamente ao Hôtel do Bom Deus. Os moribundos são teimosos, e Paris inteira pára quando madame Legrand, a brocanteuse da Rue des Martyrs, se dirige a esta praça da Cité. É de notar que estes pequenos veículos diabólicos têm janelas de vidro fosco invulgarmente sugestivas, atrás das quais podemos imaginar as mais esplêndidas agonias; basta para isso a fantasia de uma concierge. Caso se tenha mais imaginação, e ela se desenvolva por outras direcções, as conjecturas são praticamente infinitas. Mas também vi chegarem coches abertos, coches de aluguel com a capota descida e que cobravam a tarifa habitual: dois francos. É o que custa aqui a hora da morte.

4CAFFAFE-C688-4C72-9053-9DB93CA3B679 Continuar a ler

A execução da Marquesa de Távora

Na sua obra Perfil do Marquês de Pombal, publicada em 1882, Camilo Castelo Branco descreve a execução pública de Dona Leonor Tomásia de Lorena, a terceira marquesa de Távora. Camilo simpatiza com Leonor, de quem diz que era “gentilíssima, d’um talento extraordinário, muito lida, uma verdadeira distinção na corte de D. João V”. Leonor é a primeira vítima do tenebroso processo dos Távora, uma família nobre que, por despeito do Marquês de Pombal e conveniência do rei Dom José, é executada em público com requintes de uma malvadez que Pombal desejaria exemplar. Camilo não perdoa a Pombal os crimes que comete e os vícios que o apoucam. A descrição que vão ler a seguir é uma peça que, embora breve, é extraordinária.

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A aurora do dia 13 de janeiro de 1759 alvorejava uma luz azulada do eclipse daquele dia, por entre castelos pardacentos de nuvens esfumaradas que, a espaços, saraivavam bátegas de aguaceiros glaciais. O cadafalso, construído durante a noite, estava húmido. Continuar a ler

Uma conversa imaginária

Les Cigares du pharaon

Há dias fui à capital do Império. [Sim, estou bem, obrigado. Não tenho temperatura.] Ao jantar, em casa de uns amigos, conversei com o filho deles, um jovem assaz inteligente que estuda numa universidade americana da Ivy-League e que estava de visita por cá para participar numa cerimónia familiar um pouco triste. Falámos de tudo um pouco, e dos problemas da sociedade americana contemporânea, sobretudo dos problemas na perspectiva da Academia, da elite do país. Discutido o mais agudo dos problemas, que é, como sabem, o das casas de banho mistas, falámos a seguir do segundo maior problema, o da linguagem sexista e discriminatória dos clássicos. “Mark Twain vai ser reescrito?” perguntei. “Provavelmente,” respondeu-me. E contou-me uma pequena estória ilustrativa.

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O Gato

Já encontrámos o polícia Navajo Jim Chee por aqui às voltas com uma águia. Agora é com um gato. Na realidade Navajo, e em geral entre os povos tradicionais, os animais não são — ao contrário do que tendemos hoje a pensar na nossa deriva ‘anti–especista’ — pessoas apenas um pouco mais pequenas, como se ser um humano ou ser um animal fosse apenas uma questão de grau, e os animais uns humanos mais inocentes e mais próximos da pureza essencial. Com ‘direitos’ que reconhecemos e protegemos, como os ‘direitos’ das crianças. Não, para os Navajos os animais são exactamente isso mesmo: animais, ou seja, seres outros, cada um deles um habitante de um plano da existência distinto do humano. Diferentes de nós. E, porque diferentes de nós, seres que existem a uma distância que os faz mais respeitáveis e mais dignos de consideração. Como aliás sucede no mundo humano, a distância é a marca da importância e da dignidade: quanto mais importante é o homem, mais distante ele é. O gato desta estória ganha importância, isto é, ganha distância. Mesmo que, como se verá, pareça a dado momento encurtá-la. Mas isso é só uma ilusão.

O texto que vão ler é retirado da novela de Tony Hillerman, Skinwalkers. A tradução é, como quase sempre neste blogue, da minha responsabilidade.

skinwalkers

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A NASA VAI A MARTE

Hoje, dia 26 de Novembro de 2018, as parangonas dos jornais engalanam-se com a aterragem prevista em Marte de uma sonda robótica da NASA, a inSight. É coisa leve e mui pequena, com a forma de uma mesa de tampo circular com 1,56 m de diâmetro e 1 metro de altura, e cerca de 350 kg de peso. Leva três instrumentos e um braço mecânico para os movimentar. Dizem-nos que vai examinar o interior do planeta vermelho, especialmente a sua temperatura e actividade sísmica. Depois de mais de dois anos de avarias e adiamentos, a sonda foi lançada em Maio de 2018. Estamos a fazer figas para que não se desintegre na aterragem, o que é bem possível.

Tudo isto me fez pensar no que DUTTON e MENIE escreveram nas três primeiras páginas do seu recente livro At Our Wits’ End, uma obra sobre a decadência intelectual da humanidade, a qual parece ter vindo a acentuar-se nas últimas décadas. Recomendo-vos a leitura destas páginas, como aperitivo à aterragem (ou será ‘amartagem’?) do inSight. Vai com Deus, pequena sonda. Vai com Deus.

Eis aqui as páginas de abertura desse livro: Continuar a ler

Monta a morte a sua corte

04330CFB-4AAE-4D26-BF17-789A21FEAC96Ricardo II (falando com o Duque de Aumerle):

Falemos de campas, de vermes, de epitáfios;
Façamos do pó papel, e com olhos rasos d’água
Ditemos lamentações ao ventre duro da terra,
Escolhamos executores, discorramos de legados:
E nem mesmo disso, pois que podemos nós legar
Excepto ao solo os nossos restos despojados?
As terras, até as vidas, tudo é de Bolingbroke,
E a nada, salvo à morte, chamemos de coisa nossa,
Ou a esse pequeno monte de terra estéril
Que servirá de veste mole dos nossos ossos.
Por Deus, sentemo-nos aqui mesmo, neste chão,
Da morte de reis contemos a triste história;
Alguns depostos; outros partidos na guerra,
Ou perseguidos pelo espectro dos que dizimaram;
Envenenados por mulheres; mortos no sono;
Todos assassinados: pois dentro da oca coroa
Que cerca as têmporas mortais de um rei
Monta a Morte a sua corte e nela toma assento,
Do homem escarnecendo, rindo da sua pompa,
Deixando-lhe tão só um suspiro, uma breve cena,
Para reinar, ser temido, matar com pose altiva,
E inchando-o assim de prosápia e vã vaidade,
Como se a carne que empareda a nossa vida
Fosse bronze inexpugnável, e, dest’arte divertida,
A nós por fim chegando e com pequena agulha
Rebentando a muralha do castelo e … era uma vez um rei!

(William Shakespeare, Ricardo II, Acto 3, cena 2. Tradução minha)