O que eu vejo é o que É. Quem não me conhece do dia-a-dia julga, erradamente, que o meu mundo é o das palavras e ideias. Mas não, amigos, não – tal impressão vossa é uma ilusão criada por este meio palavroso em que nos roçamos uns nos outros. Porque eu não me passeio com uma máquina fotográfica por todo o lado a fixar o que vejo para a eternidade, então resta-me falar e escrever. Fotografo com o que posso, as palavras. Descrevo como sei. Tivesse eu jeito para fotografar, isto é, para apontar e “ver”, como certas pessoas que conheço, e eu juro-vos que já teria comprado uma Leica das pequenas e poria a summicron a botar fogo. Mas assim não. Tenho vergonha, encolho-me. O que por aqui fui fixando no dia de hoje foi aberrante, excepcional, o resultado de uma vagabundagem matinal e ociosa pelas modestas ruas e vielas de Sabrosa, à espera de algo que o ar fresco fazia anunciar e que eu não sabia muito bem o que seria.
Mas o que eu vejo, repito, é o que para mim É. O ser revela-se-me nas coisas visíveis e concretas, nas formas, nos volumes, nas sombras, nas cores, nos contornos do que se mostra e do que se oculta. Uma árvore, por exemplo, “é” porque se ergue contra a pesadume e nos revela o eixo vertical do mundo. Uma parede “é” também, tal como uma árvore “é“, mas é de um “ser” diferente, que eu talvez caracterize como residindo na sua dureza, na sua opacidade, nas cicatrizes que colecciona na quase eternidade da sua persistência imóvel, na rudeza da textura que nos mostra, nos limites que impõe ao espaço, e finalmente, mas não derradeiramente, no convite que nos faz a que a contornemos e vejamos o que está do outro lado. Do SEU outro lado, note-se, um lado que não existiria se não fosse por ela. E, do mesmo modo, “são” as ruas das aldeias e das cidades, e são-no com um modo de ser particularmente intenso e peremptório, porque é nelas que se juntam as nossas vidas todas, as nossas vidas tão diversas, as nossas vidas tantas, tão cheias de tudo e nada. Tão nossas, tão NÓS.
Por exemplo, olhai para esta fotografia. Reparai no bulício – sim, não vos estou a enganar – reparai no bulício das pessoas que não se vêem, mas que estão lá, ainda que invisíveis, nas pessoas que passaram por lá há um instante atrás, e que a câmara fotográfica se atrasou a registar, ou que irão estar lá não tarda nada, nas pessoas que, em suma, estão realmente lá, como sabeis muito bem e vedes claramente, nas pessoas que nunca lá deixarão de estar, porque este é um lugar ocupado e não deserto, um lugar constantemente cruzado por gente. Um lugar vivido. Reparai depois na sua complexidade, na sua complicação, no seu caos tão anti-Le Corbusier, tão real e tão autêntico, e não meramente ficcional como o daquele, reparai nos diferentes níveis, nos múltiplos planos, nas distâncias e nas proximidades, nos pequenos recantos, nas curvas, nas protuberâncias, nas alturas e nas baixezas, no próximo e no distante, no aqui e no acolá, no luminoso e no sombrio. E reparai também nos humildes objectos utilitários, na quinquilharia urbana enfim, nos sinais de trânsito, no candeeiro, na antena de televisão, na caixa de electricidade na parede junto à ombreira de pedra da porta, no fio agressivo da EDP que sobrevoa a rua e liga, de certa maneira, as casas entre si.
Isto é o que existe para mim, isto é o SER. Esta é a minha filosofia. E cabe, pobre dela, numa simples foto.
