Na margem do rio Douro, antes de chegar à Régua, num dia de Inverno frio e chuvoso

Austero e fero Douro, que ora vemos,
És — como o Furness que o poeta apouca —
Torrente de água em correria rouca,
Levando-nos ao mar em que morremos.

Teu ronco invoca a nossa vida louca,
Imagem deste cais a que chegamos,
E exaustos da viagem enfim notamos
Que Lisboa nos fez orelha mouca.

Estou deitado na margem ao teu lado
Ó Deusa achada em capa de revista,
E passo a mão em gesto imaginado
P’la tua coxa apenas entrevista.

Mas és água e um [mau] soneto usado
Por um manga d’alpaca narcisista.

(Desidério Peixoto, Pinhão, 25 de Dezembro de 2020)

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Geringonça

Francisco_de_Quevedo_(Pacheco)

 

O termo “geringonça”, tão popular e exultante em Portugal nos tempos que correm, não é de hoje. Dom Francisco Quevedo usa-o já, num poema presumivelmente escrito em 1625, para caricaturar o estilo poético do seu arqui-inimigo Luis de Gôngora. O cordobês tinha escrito Soledades em 1613, um longo poema no estilo espesso e afectado que fez a fama do autor e é um dos expoentes poéticos do Gongorismo. O poema de Quevedo – um soneto a que ele acrescenta um apêndice de sete versos – intitula-se assim “Receta para hacer soledades en un día”. Em suma, receita para poetar gongoricamente sem esforço.

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O iaque louco

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Estou a vê-los mungir o último leite que vão tirar de mim.
Estão à espera que eu morra;
Querem fazer botões dos meus ossos.
Onde estão as minhas irmãs e os meus irmãos?
Aquele monge alto ali, o que está a carregar o meu tio, tem um boné novo.
E o estudante idiota dele – nunca vi esse cachecol antes.
Pobre tio, como os deixa carregá-lo.
Como está triste, e tão cansado!
Pergunto-me que farão eles com os seus ossos?
E aquela cauda magnífica!
Quantos atacadores de sapatos ela vai dar!

Gregory Corso

Ao Albatroz

Talvez a mais mítica das aves não seja a Fénix, mas o Albatroz. Os maiores espécimes têm asas cuja envergadura chega a ultrapassar os quatro metros. Passam a maior parte do seu tempo de vida no ar em viagens intermináveis que, como afirma a lenda, fazem parcialmente a dormir. Quando voam, os albatrozes percorrem regularmente mais de mil quilómetros por dia, sobre as vastidões do Atlântico Sul e do Pacífico, e um voo deles pode levá-los facilmente a circum-navegar o globo. Acasalam demoradamente e para a vida. Amam (copulam, para os não antropomorfistas), digamos, apenas uma vez. A fêmea impregnada põe, numa deliberação que diríamos perfeccionista, apenas um ovo. Em muitas espécies, a nova cria, tão amorosamente concebida, consome um ano de vida inteira dos progenitores, até ficar apta a seguir o seu destino. “Que destino?”, perguntareis. Ora, o de navegar, claro. Só isso faz sentido.

Os marinheiros acreditam que cada albatroz é a alma de um marinheiro morto no mar. E é, eu sei de boa fonte. Como Walt Whitman, que lhe dedica o seguinte poema:

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AO ALBATROZ

Tu, que dormiste toda a noite sobre a tempestade,
Que acordas e descansas sobre as tuas asas prodigiosas,
(Desencadeou-se a tempestade brutal? Acima dela ergues-te e repousas no
céu, esse escravo que te abriga).
Agora pareces um ponto azul, ao longe, pairando no céu,
E com a luz que surge observo-te do convés,
(Eu próprio sou apenas um ponto, um sinal sobre a flutuante vastidão
 do mundo).
Longe, longe no mar,
Depois de as bravias e nocturnas correntes terem semeado a praia
de despojos,
Ao romper o dia, feliz e sereno,
Com a alvorada rósea e elástica, com o sol deslumbrante,
Com a límpida extensão do ar cerúleo,
Tu também reapareces.

Tu, nascido para medir a tempestade (és todo asas),
Para competir com o céu e a terra, com os mares e os furacões,
Tu, navio do ar que nunca arriaste as velas,
Durante dias e semanas percorreste, infatigável, espaços e reinos,
avançando sempre,
E ao crepúsculo olhaste o Senegal e a enlutada América,
Que irrompia entre relâmpagos e nuvens de trovoada,
E aí, nas tuas experiências, encontraste a minha alma,

Quantas alegrias! Quantas alegrias as tuas!

Miragaia

Miragaia

A primeira narrativa ficcional escrita em português terá sido a Lenda de Gaia, ou Lenda do Rei Ramiro, a qual aparece em duas versões distintas nos livros de linhagens medievais portugueses. A primeira delas datará dos finais do século XIII e encontra-se no chamado Livro Velho. A segunda, cerca de um século depois, no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro.

É, como podereis ler, uma estória de amor e morte, duas realidades que se entrelaçam permanentemente na vida humana, com a pertinácia dos dois irmãos dioscuri, e que adquirem nesta estória a forma particular da ferocidade possessiva do homem e da perversidade feminina que lhe corresponde.

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Aviso às crianças (um poema de Robert Graves)

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Robert Graves (1895-1985), o grande ensaista e classicista inglês, autor do incontornável Os Mitos Gregos, também escrevia versos. A seguir apresento-vos a minha tradução do seu poema Warning to Children. Soa melhor se o lerdes em voz alta.

Como sempre, desfrutai.

 

AVISO ÀS CRIANÇAS
Por Robert Graves

Crianças, se tiverdes a coragem de
Pensar na íntima grandeza, ou na rareza,
Ou na estranheza deste precioso
Único e infinito mundo em que dizeis
Viver, pensai em coisas como estas:
Ladrilhos de ardósia que rodeiam
Manchas de cor verde e encarnada,
E redes de um castanho amarelado,
E um campo de dominós
Em preto e branco alternado,
E no meio deste campo
Um embrulho em papel pardo
Que convida a puxar pelo baraço.
E no embrulho uma ilhota,
E na ilhota uma árvore grande,
E na árvore um fruto de casca resistente.
Parti a casca e abri o fruto:
No seu miolo vereis ladrilhos
De ardósia que rodeiam
Manchas de cor verde e encarnada,
E redes de um castanho amarelado,
E um campo de dominós
Em preto e branco alternado,
Onde o mesmo embrulho em papel pardo –
Crianças, não toqueis no baraço por favor!
Pois quem ousar o embrulho abrir
Ficará retido dentro dele,
Dentro da ilhota, na árvore, com
Ladrilhos de ardósia em volta da cabeça,
Rodeado por manchas de cor
Verde e encarnada, à volta de
Redes de um castanho amarelado,
Que envolvem um campo de dominós
Em preto e branco alternado,
Com o mesmo embrulho em papel pardo
Ainda por abrir sobre os joelhos.
E se então tiver coragem de
Pensar na estranheza, ou na rareza,
Ou na íntima grandeza deste infinito
Precioso e único mundo em que diz
Viver – então, puxará pelo baraço.

 

 

O sol é grande

Toda a gente conhece este soneto do doutor Francisco de Sá de Miranda. Há uns anos atrás, a RTP2 convidou um conjunto de declamadores para o dizer (clicar em http://bit.ly/1FXS2Jw para visualizar os clips respectivos no youtube). O problema — que não é propriamente um problema, antes um curioso desafio ao leitor — é que o celebrado soneto existe em diversas versões, todas supostamente atribuíveis em maior ou menor grau a Sá de Miranda, o qual era confessadamente um indeciso, incapaz de fazer as pazes com uma versão definitiva dos seus escritos. Para piorar — ou melhorar — as coisas, o registo dos textos no século XVI deixava muito a desejar, quer pela inexactidão da memória oral, quer por inépcia e errância dos copistas. O resultado, no caso deste soneto, é que se conhecem diversas versões, nenhuma delas em estado de se impor às outras de forma definitiva. Nem podendo, sequer, impôr-se, pois não fazemos ideia de qual era o pensamento do poeta na hora de entregar derradeiramente o poema à humanidade. Nas declamações televisivas que mencionámos atrás a versão usada foi a fixada por Manuel Rodrigues Lapa, para a colecção de Clássicos Portugueses da Livraria Sá da Costa (em 1943). É esta versão que se encontra por norma na internet, quando se faz uma busca. É assim:

O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Bom. Bonito, não? E que tal a versão preferida por Carolina Michaelis de Vasconcelos, que ela vai buscar ao chamado manuscrito D? Ei-la:

O sol é grande, caem com calma as aves
Em tal sazão que soía de ser fria.
Esta agua que cai de alto acordar me hia
De sono não, mas de cuidados graves.

Oh cousas todas vãs, todas mudaveis,
Qual é o coração que em vos confia?
E passa um dia assi, passa outro dia,
Incertos muito mais que ó vento as naves?

Eu vira ja aqui sombras, vira flores,
Eu vira fruita ja, verde e madura;
Ensordecia o cantar dos ruiseñores!

Agora tudo é seco e de mistura:
Também mudando me eu, fiz outras côres.
E tudo o mais renova: isto é sem cura.

Esta versão de CMV encontra-se na monografia que ela dedica ao poeta em1884, publicada pela editora Max Niemeyer, de Halle, a mesma editora das obras de Martin Heidegger, by the way, e que é de leitura incontornável. Pela primeira vez, alguém compila os diversos manuscritos e edições impressas conhecidas à época e publica a cousa toda.

Poesias de Sá de Miranda, edição de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1885).

Poesias de Sá de Miranda, edição de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1885).

O soneto XX, tal como ocorre no manuscrito D, e publicado por CMV.

O soneto XX, tal como ocorre no manuscrito D, e publicado por CMV. Atente-se nas variantes ao texto enumeradas por CMV. A e B são as edições impressas de 1595 e de 1614, respectivamente. P e F são outros manuscritos.

Mas é um bocado diferente da versão de Rodrigues Lapa, não acham? Desde logo, as aves não caem com a calma (i.e., com o calor), mas caem com calma, planando talvez sobre o ar aquecido pelo sol do fim da tarde. E há outras diferenças, facilmente detectáveis à leitura. Ora relede as duas versões. Eu espero.

Vejamos agora a edição impressa de 1614, publicada em Lisboa ao cuidado de Domingos Fernandez, livreiro, por um tal Vicente Alvarez:

O sol he grande, caem com [calma] as aves
Do tempo, em tal sazão que soe ser fria
Esta agoa que d’alto cae acordarmehia,
Do sono não, mas de cuidados graves.

O cousas todas vãs, todas mudaveis,
Qual he o coração que em vos confia,
Passando hum dia vay, passa outro dia,
Incertos todos mais que ao vento as naves.

Eu vi jà por aqui sombras e flores,
Vi agoas, e vi fontes, vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.

Mudo e seco he jà tudo e de mistura,
Também fazendome eu fuy doutras cores,
E tudo o mais renova isto he sem cura.

Àparte a omissão da ‘calma’ no primeiro verso, que deve ser, provavelmente, gralha, esta versão introduz um primeiro terceto diferente (os versos 9-11) e o verso 13 lê ‘Também fazendome eu fuy doutras cores’ em vez de ‘Também mudando me eu, fiz (d)outras côres’. E outras minudências.

E que dizer do ‘tempo’, que ora aparece, ora se eclipsa, no segundo verso? É este tempo, o da calma em que aves caem? Talvez a calma do fim da tarde? A calma do Outono? A ser a calma do tempo, e não a calma do calor, ou a calma fleumática das aves, justificar-se-ia que o poeta dissesse que as aves caem [co’a] calma do tempo, nesta sazão (=estação) que sói ser fria. Quem sabe?

Poesias de Sá de Miranda, edição impressa de 1614.

Poesias de Sá de Miranda, edição impressa de 1614.

"O sol é grande", agora o soneto número XI, na edição de 1614.

“O sol é grande”, agora o soneto número XI, na edição de 1614.

Cabe a vocês escolherem a versão que mais vos agrada. Pessoalmente, e se pudesse combinar pedaços de cada uma, eu reescreveria assim o soneto:

O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia,
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passando, um dia vai, passa outro dia,
Incertos todos, mais que ao vento as naves.

Eu vi já por aqui sombras e flores,
Vi águas, e vi fontes, vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.

Mudo e seco é já tudo, e de mistura;
Também fazendo-me eu fui d’outras cores,
E tudo o mais renova. Isto é sem cura.

Um caleidoscópio, este soneto. E um dos mais belos da nossa língua.

O Romance 85 de Francisco de Quevedo (tradução e explicação)

Um marido sofrido apresenta os seus títulos em competição com outro

Soltando verbos e nomes,                    1
à guisa de dicionário,
rompeu p’la casa da Morra,
coiceando, o Mochagão.

Cismaram-lhe que dom Lesmes,         5
aquele muitíssimo fidalgo,
que come de sopa em sopa,
e bebe de ramo em ramo, Continuar a ler

Um casado ri-se do adúltero que lhe paga o gozar com susto o que a ele lhe sobra

Dizem-me, Dom Jerónimo, que dizes
Que me pões os cornos com Ginesa;
Eu digo que me pões a casa e a mesa;
E, na mesa, capões gordos e perdizes.

E vejo que me pões também tapetes
Quando o calor pelo Outubro cessa;
Por ti minha bolsa, não a testa, pesa,
Ainda que, com ouro, a ornamentes.

Este argumento é forte e é agudo:
Tu pôr-me cornos imaginas; dest’ obra
Eu, porque o imaginas, te desnudo.

Mais corno é quem paga que quem cobra;
Ergo, aquele que me paga, é o cornudo,
O que, de minha mulher, a mim me sobra.

Francisco de Quevedo

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