Toda a gente conhece este soneto do doutor Francisco de Sá de Miranda. Há uns anos atrás, a RTP2 convidou um conjunto de declamadores para o dizer (clicar em http://bit.ly/1FXS2Jw para visualizar os clips respectivos no youtube). O problema — que não é propriamente um problema, antes um curioso desafio ao leitor — é que o celebrado soneto existe em diversas versões, todas supostamente atribuíveis em maior ou menor grau a Sá de Miranda, o qual era confessadamente um indeciso, incapaz de fazer as pazes com uma versão definitiva dos seus escritos. Para piorar — ou melhorar — as coisas, o registo dos textos no século XVI deixava muito a desejar, quer pela inexactidão da memória oral, quer por inépcia e errância dos copistas. O resultado, no caso deste soneto, é que se conhecem diversas versões, nenhuma delas em estado de se impor às outras de forma definitiva. Nem podendo, sequer, impôr-se, pois não fazemos ideia de qual era o pensamento do poeta na hora de entregar derradeiramente o poema à humanidade. Nas declamações televisivas que mencionámos atrás a versão usada foi a fixada por Manuel Rodrigues Lapa, para a colecção de Clássicos Portugueses da Livraria Sá da Costa (em 1943). É esta versão que se encontra por norma na internet, quando se faz uma busca. É assim:
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
Bom. Bonito, não? E que tal a versão preferida por Carolina Michaelis de Vasconcelos, que ela vai buscar ao chamado manuscrito D? Ei-la:
O sol é grande, caem com calma as aves
Em tal sazão que soía de ser fria.
Esta agua que cai de alto acordar me hia
De sono não, mas de cuidados graves.
Oh cousas todas vãs, todas mudaveis,
Qual é o coração que em vos confia?
E passa um dia assi, passa outro dia,
Incertos muito mais que ó vento as naves?
Eu vira ja aqui sombras, vira flores,
Eu vira fruita ja, verde e madura;
Ensordecia o cantar dos ruiseñores!
Agora tudo é seco e de mistura:
Também mudando me eu, fiz outras côres.
E tudo o mais renova: isto é sem cura.
Esta versão de CMV encontra-se na monografia que ela dedica ao poeta em1884, publicada pela editora Max Niemeyer, de Halle, a mesma editora das obras de Martin Heidegger, by the way, e que é de leitura incontornável. Pela primeira vez, alguém compila os diversos manuscritos e edições impressas conhecidas à época e publica a cousa toda.

Poesias de Sá de Miranda, edição de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1885).

O soneto XX, tal como ocorre no manuscrito D, e publicado por CMV. Atente-se nas variantes ao texto enumeradas por CMV. A e B são as edições impressas de 1595 e de 1614, respectivamente. P e F são outros manuscritos.
Mas é um bocado diferente da versão de Rodrigues Lapa, não acham? Desde logo, as aves não caem com a calma (i.e., com o calor), mas caem com calma, planando talvez sobre o ar aquecido pelo sol do fim da tarde. E há outras diferenças, facilmente detectáveis à leitura. Ora relede as duas versões. Eu espero.
Vejamos agora a edição impressa de 1614, publicada em Lisboa ao cuidado de Domingos Fernandez, livreiro, por um tal Vicente Alvarez:
O sol he grande, caem com [calma] as aves
Do tempo, em tal sazão que soe ser fria
Esta agoa que d’alto cae acordarmehia,
Do sono não, mas de cuidados graves.
O cousas todas vãs, todas mudaveis,
Qual he o coração que em vos confia,
Passando hum dia vay, passa outro dia,
Incertos todos mais que ao vento as naves.
Eu vi jà por aqui sombras e flores,
Vi agoas, e vi fontes, vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.
Mudo e seco he jà tudo e de mistura,
Também fazendome eu fuy doutras cores,
E tudo o mais renova isto he sem cura.
Àparte a omissão da ‘calma’ no primeiro verso, que deve ser, provavelmente, gralha, esta versão introduz um primeiro terceto diferente (os versos 9-11) e o verso 13 lê ‘Também fazendome eu fuy doutras cores’ em vez de ‘Também mudando me eu, fiz (d)outras côres’. E outras minudências.
E que dizer do ‘tempo’, que ora aparece, ora se eclipsa, no segundo verso? É este tempo, o da calma em que aves caem? Talvez a calma do fim da tarde? A calma do Outono? A ser a calma do tempo, e não a calma do calor, ou a calma fleumática das aves, justificar-se-ia que o poeta dissesse que as aves caem [co’a] calma do tempo, nesta sazão (=estação) que sói ser fria. Quem sabe?

Poesias de Sá de Miranda, edição impressa de 1614.

“O sol é grande”, agora o soneto número XI, na edição de 1614.
Cabe a vocês escolherem a versão que mais vos agrada. Pessoalmente, e se pudesse combinar pedaços de cada uma, eu reescreveria assim o soneto:
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia,
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passando, um dia vai, passa outro dia,
Incertos todos, mais que ao vento as naves.
Eu vi já por aqui sombras e flores,
Vi águas, e vi fontes, vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.
Mudo e seco é já tudo, e de mistura;
Também fazendo-me eu fui d’outras cores,
E tudo o mais renova. Isto é sem cura.
Um caleidoscópio, este soneto. E um dos mais belos da nossa língua.