O Padrão Real

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, X – 145.

 

E no entanto nem sempre foi em Portugal esta apagada e vil tristeza. Em Março de 1502, informa-nos João de Barros nas suas Décadas da Ásia, reuniu o rei Dom Manuel um conselho de homens bons do reino para discutir a nossa política do Oriente. Tinham-se então concluído duas viagens à Índia: a original de Vasco da Gama, em 1499, e a de Pedro Álvares Cabral, em 1501. Esperava-se em Lisboa a volta de uma terceira, capitaneada por João da Nova, e preparava-se uma nova viagem de Vasco da Gama, poderosa de vinte navios. O conselho convocado pelo rei realizou-se na Casa da Guiné e da Índia, em cujo salão maior se podia contemplar o Padrão Real, um enorme mapa mundi que era continuamente actualizado à medida que os navegadores chegavam a Lisboa com nova informação. O Padrão Real continha o melhor conhecimento geográfico e humano então disponível, e era guardado dia e noite por homens armados. Só algumas pessoas de confiança do rei e os navegadores que partiam para novas expedições o podiam consultar. Continuar a ler

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Pisa

André Suarèz, o magnífico escritor francês, nascido judeu Isaac-Félix, em Marselha, em 1868, de quem se disse — e não creio haver aqui um exagero — possuir a cadência e a solenidade séria e meditada da prosa de Pascal, tem um apelido português. Nunca foi, que eu saiba, traduzido ou editado na língua de Camões. Enfim. Pela minha parte gostaria de o saber descendente ou pelo menos familiar do seu homónimo, o grande arquitecto bracarense André Soares. E talvez seja.

Suarèz foi toda a sua vida um apaixonado por Itália, que visitou a pé e em viaturas e carroças várias por diversas vezes. Destas andanças suas deixou-nos um dos mais exultantes livros de viagem que conheço, Voyage du Condottière, publicado em três volumes, entre 1910 e 1932. A segunda parte intitula-se Fiorenza. É sobre a cidade das flores (Florença) e o seu entorno toscano e úmbrico. No quarto capítulo desta segunda parte faz a descrição de Pisa, a cidade que Génova despojou, em momento surpreendente e imprevisível, da sua grandeza no dia 6 de Agosto de 1284.

E reza assim:
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Le Portugal

No seu livro de 2014, Threats of Pain and Ruin, o ensaísta inglês Theodore Dalrymple escreve a dado passo sobre Portugal, a propósito de um velho livro de viagens de 1956 e que ele encontrou em casa de uma amiga recentemente falecida. Este livro de viagens é o Le Portugal, de um escritor francês, Yves Bottineau, com fotografias de um tal Yan. Paris, edição Arthaud.

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O Comité Português de Estudo do Kimilsunismo

Lisboa, Queluz, Amadora e o Estoril têm, orgulhosamente, grupos de estudo do kimilsunismo. Eu explico, se não se importam.

Kim il-Sung, pai de Kim Jong-il e avô de Kim Jong-un, foi o criador da filosofia juche, a qual orienta benévola e ininterruptamente desde 1955 a política, a religião, a ciência, a literatura, as relações humanas, o coito dos coelhos e a florescência das estações na República Popular da Coreia [do Norte]. É, para usar uma definição oficial, a “contribuição original, brilhante e revolucionária para o pensamento nacional e internacional” de Kim il-Sung, ou seja, basicamente, a culminação cósmica do pensamento marxista-leninista.

Para celebrar os setenta anos de Kim ergueu-se em 1982 em Pyongyang, a capital do país, uma gigantesca torre de pedra com 70 pisos e 170 metros de altura (tem mais um metro que o Washington Monument), no topo da qual brilha perpetuamente uma chama de vidro vermelho.

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Cá em baixo, à entrada do monumento, no enorme átrio que dá acesso aos andares superiores, as paredes estão literalmente preenchidas com pequenas lápides rectangulares de mármore, similares às inscrições votivas de alguns santuários de religiosidade popular e onde os crentes de todas as nações exprimem a sua admiração por Kim e pelo seu pensamento. Como diz um escritor que muito admiro, espera-se, ao entrar neste átrio, ver dezenas de braços, pernas, cabeças e dedos de cera oferecidos por aleijadinhos miraculosamente curados, como no Santuário de Fátima ou no Centro de Cirurgia Cárdio-Torácica do doutor Manuel Antunes nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Imaginem a minha admiração quando me apercebo que, colocada ao nível dos olhos, para mais fácil visibilidade, está a maior de todas as inscrições votivas, quatro vezes maior que as outras — a do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo! Observem a fotografia em baixo, para detalhes.

Ex-votos ao santo

O Comité tem quatro centros, postados estrategicamente à volta de Lisboa. Consta-me que existem nesses centros, e guardadas em vitrines à prova de vandalismo, relíquias do santo, quer dizer de Kim: um fragmento de unhaca em Queluz, uma mecha do cabelo em Lisboa, o perpúcio na Amadora e — glória das glórias — a cabeça inteira no Estoril. Dizem algumas pessoas que essa cabeça fala e emite oráculos, os quais se ouvem claramente em Loures e são estudados com desvelo hermeneuta na Soeiro Pereira Gomes. Mas isso não posso garantir.

Seja como for. Sinto-me impante de orgulho. Vocês não? Ora confessem lá: ser português, às vezes, compensa. Não acham?

A Póvoa de Varzim

A Póvoa de Varzim

No seu livro antes citado, Ramalho Ortigão dedica um capítulo — o quinto — à descrição da Póvoa de Varzim e dos poveiros, prestando assim uma mais do que justa homenagem àquela que é a praia nortenha por excelência. Por lá passei os meus verões da meninice, no sector 45, salvo erro. Um mês inteiro, por causa das gripes e pneumonias de inverno, sob o cuidado solícito da minha mãe, das amigas da minha mãe, que eram uma legião de matronas, e de um sem número de banheiros e vizinhos de que não lembro mais o nome. Mas lembro a rua da Junqueira, lugar de encantamento permanente, e o cinema Garrett, onde por cinco tostões eu podia sentar-me num banco de pau corrido, ver as obras completas do Cantinflas e assistir, com uma lágrima de comoção, às paixões nunca consumadas do Joselito e da Marisol.

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A Foz

A Foz

Se lestes o meu último post neste blogue, dedicado ao diário português de Mircea Eliade, sabereis que o escritor romeno exalta nele a popularidade de duas obras de Ramalho Ortigão. Uma delas é “As Praias de Portugal: Guia do Banhista e do Viajante”, publicada em 1876, na Livraria Universal, de Magalhães e Moniz, sita nos números 12 a 14 do Largo dos Loyos, na mui nobre cidade do Porto.

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Mircea Eliade em Viseu

Mircea Eliade deixou um Diário Português, escrito durante os anos de 1941 a 1945, quando por cá andou vestido de Adido Cultural. Recentemente publicado em várias línguas, deixo-vos aqui um extracto deste diário, não datado, mas que é certamente do Verão de 1941. Nele, Mircea Eliade passeia-se pelo centro do país, inicialmente pelo Buçaco e Luso, depois por Viseu, onde visita a Sé e o Museu Grão-Vasco. A tradução é da minha responsabilidade. Continuar a ler

Um avistamento francês de um vrykolakas em Dezembro de 1700 na ilha de Mykonos

Um avistamento francês de um vrykolakas em Dezembro de 1700 na ilha de Mykonos

Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708), foi um botânico francês do século XVII. Nascido em Aix-en-Provence, antiga capital histórica da Provence, viu a sua carreira académica culminar no Collège Royal, em Paris, com a cátedra de medicina e botânica, carreira essa que foi infeliz e prematuramente interrompida por um atropelamento fatal por uma carroça na rue Lacépède, nas proximidades do Jardin des Plantes. Corria o dia 16 de Abril de 1708, tinha o nosso autor apenas 52 anos de idade e uma saúde de ferro.

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