Imortalidade III

Fecharam-nos o café da Avenida, na nossa triste Bila. De repente, sem aviso prévio, sem nos darem tempo a protestarmos ou a procurarmos solução. Uma noite ele lá estava, como sempre, a generosa porta aberta, a televisão discreta à esquerda de quem entra, a empregada brasileira pronta a servir-nos o café com um copo de água bem gelada, as fotografias de oleiros espalhadas nas paredes, a lembrar-nos que a vida é dura e frágil como uma pichorra de loiça negra de Bisalhães. Na noite seguinte, a porta cerrada, sem uma nota explicativa. Fechado. Foi uma oferta irresistível, dizem-nos mais tarde; um café a menos, uma hamburgueria a mais.

Lagartixa

Para mim, não é demasiado grave, há mais dois cafés nas redondezas, com tv e futebol. Não fumo, posso encostar-me num qualquer lugar com uma reserva mediana de oxigénio e pouco barulho. Mas para o meu amigo A., que fuma compulsivamente — quatro maços de Marlboro em cada dia — faz toda a diferença. Andámos por ali umas noites vagabundas, sem achar um rumo, como marinheiros à procura de taberna em porto hostil. Lá acabámos por arribar a um, numa rua mais acima, onde estamos desde então. Mas não é a mesma coisa: ruidoso, com uma tv sempre a bombar a bola, uma música de blues repetitiva, que nos põe febris e pessimistas e desestimula a cavaqueira, clientes alienos, de outros tempos e de outras freguesias, e uma tiragem de fumos mais do que suspeita e que nos deixa os olhos irritados e a garganta áspera.

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Imortalidade II

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Em conversa nocturna com A., ao lado da Capela Nova. Queixamo-nos de dores em lugares exóticos da nossa anatomia. Já não é só no baixo ventre, como costumava ser. Agora é no baixo ventre do baixo ventre, como se houvesse em nós uma criança minúscula prestes a nascer e esta viesse ao mundo sofrendo de uma maleita irremissível. É esta pelo menos a minha teoria, que eu desfio contemplando aquela fachada veneranda, que viu gerações de vilarealenses ilustres, todos eles indispensáveis para si próprios, nascerem e morrerem sem sombra de lamento dos vindouros. E vou-me eclesiasticando deste modo, perante o olhar sarcástico do meu amigo.

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Sopa de espigos

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Todas as vilas e aldeias portuguesas de alguma expressão económica e populacional têm um mercado tradicional, vindo da noite dos tempos, onde se podem vender e comprar alimentos e outras cousas necessárias à sobrevivência do corpo, como sejam roupagens contrafeitas, panos para limpar todas as nódoas, loiça de barro grosseiro ou fancaria de uso culinário. A minha Bila não é excepção. Nela o mercado funciona no centro da cidade, um recinto térreo construído naquele estilo inconfundível do modernismo à Estado Novo dos anos cinquenta, e apertado entre ruas de nomes sérios, como a rua de Santa Sofia, que suponho referir-se, não à igreja de Constantinopla, mas à mártir cristã que foi mãe de três meninas, de seu nome Fé, Esperança e Caridade, e santa protectora das viúvas, muito boa para as pústulas e a carne viva, ou, do lado oposto do mercado, a rua de Gonçalo Cristóvão, um abastado fidalgo tripeiro que foi vítima, como tantos outros, da perfídia e da inveja do Marquês de Pombal.

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