Fui, há umas semanas atrás, pela hora do almoço, levantar uma encomenda à estação de correios na Avenida. Por causa das obras em curso na estação, a sala de atendimento é nas traseiras do edifício, um espaço improvisado e exíguo onde duas funcionárias, em guichets contíguos, atendem uma dezena e meia de clientes. Retiro, como de costume, um bilhete numerado na máquina, sou o número 71, a coisa vai ainda nos 50 e tal. Sento-me numa cadeira livre. Gente entra aos poucos, as cadeiras ao meu lado entretanto ocupadas por duas senhoras, uma ainda jovem, outra mais idosa, que conversam animadamente.
Para ocupar o tempo, saco de um livro e começo a ler. Os minutos passam lentamente. Uma boa meia hora depois o placard na parede em frente marca finalmente o número 71. Levanto-me para ser atendido, dou um passo em frente e sou interpelado pela mulher mais jovem, que me pede: ‘o senhor não se importa que passe à sua frente? Eu sou o 73 e preciso de me despachar, é rápido.’ A senhora mais idosa inclina-se na sua cadeira e acrescenta: ‘eu sou a 72, vou deixá-la passar’. Olho para ela, que me sorri. Apetece-me por momentos dizer que também eu serei rápido, que só vou levantar uma encomenda. Mas o meu cavalheirismo leva a melhor. Que diacho, alguma urgência não declarada, alguma razão maior… ‘Faz favor’, decido-me. E volto a sentar-me. Com um novo sorriso, a cliente 73 avança para o guichet livre e pousa sobre o balcão uma pequena pasta com diversos impressos e documentos. Fala em tom familiar com a funcionária. Apercebo-me que é pessoa que frequenta amiúde o correio, provavelmente uma funcionária de qualquer empresa que vai despachar o expediente do dia. Sinto-me vagamente enganado, sorrio benevolente. Nada de grave, a funcionária do guichet ao lado está a despachar a sua cliente. Espero.Dois minutos depois, a cliente do lado sai, a funcionária carrega no botão dos números, soa o besouro, ilumina-se no mostrador electrónico o número 72. É a minha vez. Levanto-me da cadeira, mas sou ultrapassado pela senhora idosa que estava ao meu lado e tinha o número 72, a qual em duas passadas se chega ao balcão e nele coloca resoluta o seu bilhetinho. ’72’, diz ela. A funcionária, que aparentemente não se apercebera de nada, começa a atendê-la. Tudo isto se passa numa fracção de segundos, de tal modo que eu sou colhido a meio do percurso, um percurso breve, pois não há mais de 2 metros entre as cadeiras e o balcão. A distância é aliás tão curta que, para passar à minha frente, a senhora idosa amiga da jovem tem literalmente de dar um salto, como se tivesse molas nos pés, e de traçar no espaço-tempo uma pequena curva acrobática. Ainda me toca ao de leve. A bem dizer, empurra-me, num chega-pra-lá quase imperceptível.Sou colhido de surpresa. Uns segundos depois, passado o espanto, articulo: ‘minha senhora – digo para a cliente mais idosa – eu sou o número 71, a senhora lembra-se? Cedi o meu lugar à sua amiga, para ela ser atendida’. Toda a gente presente ouve a conversa, estamos num espaço de não mais de 20 m2, toda a gente tem um número na mão, toda a gente está a ouvir, não há conversas paralelas, não há televisão a entreter, como nas salas de espera dos centros de saúde, o espectáculo é apenas aquele. Toda a gente ouve. Por seu lado, a senhora do 72 [doravante a cliente 72, para ser económico] nem se volta, finge que não é nada com ela. A funcionária do guichet, óculos na ponta do nariz, examina um papel que ela lhe entregara. Hesito, repito num tom de voz um pouco mais alto: ‘minha senhora, é a minha vez, lembra-se? Cedi o meu lugar à sua amiga.’ E aponto para o lado, onde a jovem do 73 finge igualmente que nada se passa.As duas funcionárias estão agora atentas. Olham uma para a outra, interditas. Eu insisto, agora dirigindo-me à funcionária do 72: ‘Esta senhora – e aponto de novo para a jovem, que continua a ignorar-nos e a fingir que a coisa não é com ela – pediu-me para eu a deixar passar, que tinha pressa. Eu sou o 71.’ E mostro o meu número. A funcionária hesita, desconfortável, olha para a colega do lado, que interrompe por momentos o atendimento da 73 e confirma: ‘sim, este senhor deixou passar esta senhora’. Perante isto, a ‘minha’ funcionária diz por fim à cliente 72: ‘este senhor é o 71, não se importa?’ É então que a 72 resolve falar, ainda sem se voltar para mim: ‘e eu sou a 72, e esse é o número que está ali’. Aponta para o placard electrónico, onde, olímpico, se destaca ainda o número 72. ‘Mas, digo eu, a senhora sabe perfeitamente que eu deixei passar a sua amiga, aliás a senhora pediu-me também que eu fizesse isso!’ Estou entre indignado e espantado, penso por momentos que sonho, que esta cena não é real. A minha voz sobre de tom, mas é claramente a de alguém que hesita, que não parece senhor da sua razão.A cliente 72 volta-se finalmente para mim e diz, decidida: ‘eu não tenho nada a ver com isso, a minha amiga está grávida e precisava de ser atendida, e eu sou o 72. Foi o senhor que a deixou passar.’ ‘Mas – volto a dizer eu – a senhora viu perfeitamente o que se passou, aliás pediu-me que a deixasse passar, disse-me que era o 72 e a ia deixar passar também. Porque é que passou à minha frente também?’ ‘Eu sou o 72 e é esse o número que está ali e vou ser atendida. Também tenho pressa!’ A cliente 72 fala comigo como se eu fosse um importuno, ocorre-me pensar que ela acha que eu estou a tentar tomar o lugar dela, sinto-me noutro planeta, o olhar e o tom são tão genuínos, tão directos. Vejo-lhe a boca cerrada, os lábios finos de resolução indignada, como só certas pessoas – ia escrever certas velhas, mas prefiro abster-me – são capazes de fazer, e volta-se para a funcionária. ‘Atenda-me! diz ela. É a minha vez!’ Há agora um tom de ameaça na sua voz.
A funcionária olha para mim, faço um gesto de encolher os ombros, ela diz-me: ‘o senhor não se importa? É rápido.’ ‘Também é rápido para mim, só venho levantar uma encomenda.’ A minha réplica é frouxa, quase derrotada. E aponto para uma estante metálica por detrás delas, onde se alinham pacotes de todo o tamanho e feito. ‘Não se importa de me atender? Estou com pressa!’ insiste, agora aos gritos, a cliente 72. A funcionária suspira, olha de novo para mim e diz entre dentes: ‘só um momento’. Com um som forte que corta o silêncio de toda a gente, a funcionária dos correios vibra uma carimbadela num impresso, tecla frenética uma máquina, diz para a cliente 72 qualquer coisa que não oiço, levanta-se do seu lugar, vai a uma impressora próxima, retira um papel, recebe uma nota de 5 euros, faz uns trocos. A cliente 72 volta-se para a jovem – a 73 – e diz-lhe ‘até logo’. E sai.A funcionária está agora livre e eu encosto-me ao balcão, papel na mão. Soa o besouro: número 73. Digo: ‘o 73 é esta senhora’. Aponto a grávida – que de grávida nada tem de aparentemente visível – a qual continua a despachar a sua papelada no guichet vizinho. A ‘minha’ funcionária carrega (maquinalmente?) no botão, o besouro soa de novo, o número agora é o 74. E eis que se levanta outra senhora de uma cadeira próxima, se dirige ao balcão e diz: eu sou o 74. Empurra-me literalmente. ‘Eu sou o 74’, repete, e coloca o papelinho com o seu número sobre o balcão, ao lado do meu humilde e idiota 71. Há um silêncio em toda a estação. Eu olho para essa senhora, que é de meia idade e tem, como a anterior, um ar decido e justo, olho para as duas funcionárias, primeiro para a ‘minha’ e depois para a outra que se detém espectante, olho para o público que não perde pitada e nada diz. Nem uma palavra. Estou agora, mais do que nunca, convencido que isto é um sonho. E oiço-me, no meio do sonho, a dizer: ‘ok, a senhora é de facto o 74. E suponho que tem pressa também? E que o 75 – e nisto volto-me para o público – também tem pressa? E o 76 também? E o 77?’ Não continuo. Ninguém me responde, as caras voltam-se incomodadas. Suspeito, por um momento, que toda a gente ali me considera um troglodita, um violador de direitos, um penetra que quer passar à frente daquelas senhoras, daquelas cidadãs exemplares. Ninguém diz nada, nem uma palavra.Dou um passo ao lado, liberto o guichet para a senhora 74. A funcionária hesita, olha para ela, olha para mim, articula: ‘não se importa que eu atenda este senhor? É rápido e tem o número 71.’ A cliente 74 diz, agastada: ‘Mas eu sou a 74 e ali diz 74. E estou com pressa, tenho de ir apanhar uma camionete.’ ‘É rápido’, repete a funcionária. Estende-me a mão, uma mão que treme visivelmente, toma nela o papel que eu ainda seguro, dirige-se à estante, retira um pequeno pacote, do pacote destaca um papel, diz-me: ‘assine aqui.’ Eu assino, rápido, silencioso, toda a gente silenciosa, toda a gente silenciosa, um silêncio brutal, saio da estação para a vida, vencido e envergonhado.Tudo isto se passou em Vila Real, Trás-os-Montes, em Abril de 2013, numa estação dos correios do centro da cidade, entre mim e uma dezena e meia de cidadãos impolutos e honestos. Passou-se assim mesmo, com a exactidão de reportagem, com as palavras que foram realmente trocadas, na sequência narrada, sem um momento de fantasia ou inventiva novelesca. Assim mesmo. Entre mim e uma dezena e meia de cidadãos portugueses exemplares.A todos vocês, amigos democratas que me lêem, dedico esta estória. Tirem dela a conclusão que quiserem. Pode nada querer significar, pode. Mas talvez – quem sabe! – que nada do que se passa seja verdadeiramente sem significado. Talvez que o mundo seja uma teia bem urdida de coisas, todas elas de importância, porque todas elas parte indispensável do todo. Assim em cima, assim em baixo, como diz a antiga filosofia. Talvez que a estação central dos correios faça parte desse todo.