Na margem do rio Douro, antes de chegar à Régua, num dia de Inverno frio e chuvoso

Austero e fero Douro, que ora vemos,
És — como o Furness que o poeta apouca —
Torrente de água em correria rouca,
Levando-nos ao mar em que morremos.

Teu ronco invoca a nossa vida louca,
Imagem deste cais a que chegamos,
E exaustos da viagem enfim notamos
Que Lisboa nos fez orelha mouca.

Estou deitado na margem ao teu lado
Ó Deusa achada em capa de revista,
E passo a mão em gesto imaginado
P’la tua coxa apenas entrevista.

Mas és água e um [mau] soneto usado
Por um manga d’alpaca narcisista.

(Desidério Peixoto, Pinhão, 25 de Dezembro de 2020)

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A Coisa

[Um texto de Desidério Peixoto, escrito à hora do almoço numa tasquinha do Bairro Alto, num dia cinzento de Inverno]

Dou-lhe este nome, à falta de outro melhor. Poderia chamar-lhe repulsa, ou fuga, ou recusa, ou medo, ou abafação, ou, o que seria porventura o mais próximo dos nomes, estranheza. Mas a verdade é que a Coisa não é nenhum deles, tendo ao mesmo tempo um pouco da cada um, numa mistura que é diferente e mais do que a soma de todos.

Conheço a Coisa desde tempos imemoriais. Desde que as mulheres, então simples raparigas, começaram a ser algo de especial para mim, e não apenas pessoas comuns na paisagem ordinária, que a Coisa me visita com regularidade. Chega sem aviso prévio, sempre rápida e de forma decisiva. Limpa, como um cirurgião do coração que corta com a consciência da delicadeza e da necessidade do golpe. A Coisa, um bisturi do sentimento.

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