Ao contrário do que possa pensar-se, o livro de Brian Weiss não é sobre a vitória de um qualquer clube num campeonato de futebol. Ou sobre os milagres de Fátima. Mas o português — e sobretudo a portuguesa — média já sabe disso, se acreditarmos no que a capa do livro nos diz: que já foram vendidos mais de 200000 exemplares em Portugal.
Isto é impressionante. Mais de 200000 pessoas em Portugal que descobriram que tinham vivido no passado sob outras identidades, como capitães da guarda imperial, odaliscas do sultão, sacerdotisas de Amon-Ra no tempo de Ramsés II, cowboys no Texas, ou actores em Stratford-upon-Avon no início do século XVII. Que tinham sido machos e fêmeas, esposas, maridos, amantes, filhos, pais e mães dos seus consortes e amigos actuais. Que tinham vivido aventuras gloriosas ou tinham perecido sob sevícias extremas. Que tinham sido cortesãs em Versalles ou escravos na China. E que, finalmente, como uma formiga laboriosa mas inconsciente, que mil vezes trepa para mil vezes tombar, tinham finalmente chegado ao cimo da colina da roda da existência, aqui, precisamente aqui, neste consultório de psicoterapia regressiva, onde tudo se ilumina de sentido e de libertação esfuziante. Aleluia.
Esta fantasmagoria imbecil é uma ilustração quase exemplar do que se chama, em teoria das religiões, sincretismo. O sincretismo é uma operação análoga à ‘refeição de restos’ na culinária. Esta refeição de restos é um luxo (alguns diriam uma maldição inevitável) da modernidade super-abundante, só possível com a invenção dos frigoríficos. Antes destes, os humanos não podiam dispensar-se de comer tudo o que tinham à frente, sob pena de terem de deitar fora o escasso alimento confeccionado. Não havia restos, tudo se comia, no próprio dia ou no dia seguinte.
Do mesmo modo, o sincretismo pseudo-filosófico e religioso: de repente, uma comunidade, que antes vivia modestamente sob o capital acumulado pelos seus videntes passados, encontra-se com o exotismo de outras tradições e decide experimentá-lo. Petisca, porque uma tradição alheia só se petisca, não se pode consumir totalmente. Seria, aliás, indigesta refeição, se tivesse de ser. Experimentem viver de sushi todos os dias.
Esta coisa das regressões terapêuticas — que, apresso-me a dizer, nada tem a ver com o que os psicanalistas freudianos chamam ‘regressão’ — vai buscar a sua inspiração a uma espécie de religião sincretista moderna, inventada, na Nova Iorque do último quartel do século XIX, por dois passarões chamados Helena Blavatsky e Henry Olcott, fundadores de uma Sociedade Teosófica que rapidamente transladaram para Madras, na Índia, e que originou, qual mula fecunda, outras desgraças, como a antroposofia do alucinado Rudolph Steiner (o qual, consta-me sem me surpreender, tem vindo a retomar alguma popularidade, em linha aliás com o desespero enfastiado que nos caracteriza). Entre as doutrinas propostas por este esoterismo teosófico figura a da reencarnação, que não se sabe bem se é aqui a ideia ocidental da metempsicose, insinuada na filosofia pitagórica/órfica/platónica da antiguidade, e cujos contornos imprecisos desesperam os classicistas, ou a oriental e mais elaborada da ‘roda do Saṃsāra‘ hindu-budista. Provavelmente uma mistura das duas, na boa tradição sincrética. Uma espécie de bacalhau com batatas e sushi.
Ora, porque há aqui um elemento de sushi — as ideia de karma e Saṃsāra desenvolvidas no hinduísmo e sistematizadas no budismo — talvez seja interessante e educativo passarmos em revista o que estas tradições orientais pensam sobre o assunto. Tomemos o budismo como fio condutor.
A ideia búdica é, em síntese, a seguinte [seguiremos aqui, em traços largos, o resumo apresentado por Donald Lopez, no seu livro The Tibetan Book of the Dead: A Biography (2011, Princeton University Press’), um livro sobre o Bardo Todol, um livro que nunca existiu]:
“o Buda explica que os seres do universo vagueiam pelos caminhos do renascimento (reencarnação). Este ciclo, chamado Saṃsāra (literalmente ‘errância’ ou ‘perambulação’) não tem princípio nem fim, excepto para aqueles poucos afortunados que conseguem atravessar o caminho para o nirvana, o estado de libertação do nascimento e da morte. Até então, os seres renascem uma e outra vez, em um dos seis reinos: como deuses, semi-deuses, humanos, animais, fantasmas esfomeados e seres infernais. Estes domínios são mais elaborados no topo e na base, com diversos céus acima e diferentes infernos — escaldantes e gelados — abaixo. Cada um destes estados, incluindo o dos deuses, é temporário, e termina numa morte e reencarnação. Os domínios dos animais, dos fantasmas e dos seres infernais são considerados de grande sofrimento, e os dos deuses e semi-deuses de grande prazer. O humano fica a meio caminho, caracterizado por uma mistura de prazeres e de sofrimentos.
A máquina da Saṃsāra é alimentada pelo karma, o mecanismo de causa e efeito das acções. A doutrina budista afirma que todos os actos intencionais, sejam eles físicos, verbais ou mentais, deixam um resíduo no agente. Este, tal como uma semente, acabará por produzir um efeito em algum momento futuro, um efeito que tomará a forma de um prazer ou de uma dor para a pessoa que realizou o acto. Assim, os budistas concebem um universo moral no qual as acções virtuosas criam experiências de prazer e as acções não-virtuosas experiências dolorosas. Estas acções não-virtuosas são dez: matar, roubar, má conduta sexual, mentir, discurso que semeia a divisão, discurso agressivo, discurso sem sentido, inveja, intenção maliciosa e pensamento errado. Os três primeiros são actos negativos do corpo, os quatro seguintes actos negativos da linguagem e os últimos três actos negativos da mente.
Estes actos não só determinam a qualidade da vida presente, mas determinam igualmente o lugar do renascimento futuro. Dependendo da gravidade das acções negativas, poder-se-á renascer como animal, como fantasma esfomeado, ou num dos infernos ardentes ou gelados, nos quase, aliás, a duração de uma vida é particularmente longa (milhões de anos). Renascer como deus (1) ou como humano é o resultado de uma acção virtuosa, e é considerado raríssimo; a vasta maioria dos seres no universos habitam os três domínios desafortunados dos animais, dos fantasmas e dos infernos. Mais raro ainda é renascer como humano com acesso aos ensinamentos do Buda. Numa famosa analogia, conta-se que uma única tartaruga cega nada num vasto oceano, vindo à tona para respirar apenas uma vez em cada século. Na superfície do oceano flutua um único jugo dourado. É mais raro, diz o Buda, renascer como ser humano com oportunidade de praticar o darma, do que é para a tartaruga emergir para a sua inspiração centenária com a cabeça no centro do buraco do jugo dourado [Majjhima Nikaya, 129].”
Como se compreende, o Budismo é fundamentalmente pessimista. Era, de longe, preferível não ter nascido, mas, tendo nascido, o objectivo é atingir o nirvana. E o que é nirvana, este estado de beatitude inefável? — perguntareis. Pois bem, há várias respostas a esta pergunta, dentro e fora do Budismo indiano. Mas a mais comum, e aquela que me parece mais de acordo com a inspiração original desta religião — se é que podemos recuperar hoje este ‘estado original’, o que é duvidoso em qualquer religião e no Budismo em particular — é a seguinte: o nirvana é o VAZIO, o NADA (Śūnyatā). E este NADA quase nenhum existente, talvez que apenas um em cada trilião de triliões de seres existentes no universo, uma vez vindo à existência, o pode atingir.
Nós já suspeitávamos: afinal, o sushi é impalatável.
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(1) Renascer como deus pode parecer o objectivo mais apetecível, mas tal não é verdade. A vida de um deus é, de facto, no que concerne à duração e aos prazeres de que é composta, incomparavelmente melhor do que a de um humano. Mas também os deuses morrem, ainda que a sua existência se estenda por milhares ou milhões de anos. E durante essa existência de prazer os deuses não sentem motivação para se libertarem da roda da existência, para atingirem o darma, pelo que acabarão, no final da sua existência, por renascer fatalmente num dos planos inferiores. É, por isso, preferível, na óptica do budismo, renascer como ser humano, a única condição em que a busca da libertação é possível.