Na última entrada de Junho de 1877, intitulada “Os admiradores dos turcos”, do seu Diário de um Escritor, Fiódor Dostoievski contrastou a crença cristã do povo russo com a sabedoria ilusoriamente superior do “ilustrado”. O pretexto próximo deste escrito fora a guerra russo-turca de 1877-78, que levara os “intelectuais” a abraçar, como tende quase sempre a acontecer, a causa do inimigo maometano. Mas por detrás da vontade do escritor de zurzir este iluminismo ignorante e anti-patriota há sobretudo o propósito de exaltar o mistério da fé dos simples, uma fé que é para Dostoievski uma verdade axial da humanidade. De caminho é também o cristianismo seco do pastor protestante que é criticado. Continuar a ler
Islão
Não com um estrondo, mas com um traque
Ao contrário da cultura ocidental, que é uma excepção absoluta, as demais culturas humanas são diferenciadoras, ou, como se diz agora com uma palavra que adquiriu um significado depreciativo, discriminadoras. Veja-se o Islão. Como qualquer cultura tradicional, o Islão estabelece uma distinção fundamental entre o sobrenatural e o terrenal, entre Deus e a sua criação. Esta é a dicotomia primeira, um princípio ontológico no qual se inscreve tudo o que vem a existir: há Deus e há o Resto. E as demais distinções reproduzem, por assim dizer, esse princípio ontológico originário, um princípio sem o qual tudo é afectado de não-ser. Porque o que não se distingue do demais, por não ter nada a que se contrapor, não existe pura e simplesmente.
O futuro da Europa
Enquanto por cá discutimos a lana caprina, num discurso autista e muito tonsural, a Europa morre.
Esta morte não é para amanhã, mas acontecerá dentro de vinte anos. Ou quinze. Ou vinte e cinco. O prazo não é obviamente precisável ao detalhe, mas a derrocada da nossa civilização é irreversível. Cairão os países um a um, talvez a França primeiro, ou a Bélgica, ou a Dinamarca. Depois a Grã-Bretanha, que resistiu a Hitler, mas se revelará incapaz de vencer o inimigo interior, as legiões de muçulmanos que as coelheiras prolixas das grandes cidades, alimentadas a subsídios do Estado, multiplicam em vagas apocalípticas. Depois o al-Andaluz, um espaço especialmente relevante, pois ainda hoje é considerado, no discurso político oficial do Islão, como terra islâmica, como al Islam.
Uma descrição da Palestina
Da sua viagem de 1867 pela Palestina, Mark Twain deixou-nos uma detalhada e pitoresca descrição em ‘The Innocents Abroad’. Nos parágrafos que se seguem seleccionei o que me pareceu ser o mais característico da impressão que aquela terra e os seus habitantes provocaram no imortal autor de Huckleberry Finn. Dela se pode reconstituir, trinta anos antes da primeira grande migração sionista impulsionada por Theodor Hertzl, o estado da região então pertença do império otomano.
O escritor, que era ateu, nao tem qualquer interesse confessional a proteger. A sua antipatia pelo Islão é profunda, nota-se aqui ou ali nestes extratos. Mas é a aversão de um humanista crente no progresso e nas faculdades críticas dos homens banhados pelo espírito das luzes, não a de um zelota islamofóbico.
Dada a relevância recente da ‘questão palestiniana’ parece-me que os meus amáveis leitores terão interesse em ler estas passagens.
PS: há, para os interessados, uma edição portuguesa do livro, da editora Tinta da China. A tradução que se segue é, porém, inteiramente da minha autoria.
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Cap. 46, Mar da Galileia, perto de Dan:
Não há sequer uma aldeia isolada em toda esta extensão — nem uma em trinta milhas em redor. Há dois ou três pequenos aglomerados de tendas de beduínos, mas nem uma habitação permanente. Podemos cavalgar dez milhas, em qualquer direcção, e não pôr a vista em cima de dez seres humanos.
Cap. 47, mais a sul na Galileia:
Atravessámos algumas milhas de território desolado, cujo solo é assaz rico, mas está totalmente entregue às ervas daninhas — uma terra gemebunda, silenciosa, onde avistámos três pessoas — Árabes, que vestiam apenas uma longa camisa de tecido grosseiro, como essas camisas de estopa que costumavam ser o único vestuário de verão dos rapazinhos negros das plantações do Sul.
Cap. 48, em Tiberias:
Vir à Galileia para isto. Se estes desertos sem gente, estas colinas ferrugentas e nuas, que nunca, nunca, nunca libertam o olhar dos seus ásperos contornos, e que vão desaparecendo e diluindo-se numa vaga perspectiva; essa melancólica ruína de Capernaum; esta estúpida aldeia de Tiberias, entorpecida sob as suas seis plumas fúnebres de palmeiras (…)
Cap. 49, nas proximidades do Monte Tabor:
Chegámos a Tabor em segurança, e muito à frente desse guarda aldrabão coberto de ferro. [uma referência a um guarda carregado de pistolões que as autoridades otomanas impunham e faziam pagar aos viajantes, sob o pretexto de que os beduínos eram malfeitores perigosos] Nunca vimos um ser humano em toda a viagem, e muito menos hordas de beduínos fora da lei. Tabor ergue-se isolado e só, uma sentinela gigante sobre a Planície de Esdraelon.
Cap. 51, no Vale de Jezreel (ou Planície de Esdraelon:
Ao chegarmos à ponta mais distante da Planície, percorremos uma vereda que subia uma colina e achámo-nos em Endor, famosa pela sua bruxa. Os seus descendentes ainda ali moram. E constituíam a mais bruta horda de selvagens semi-nus que encontrámos até agora. Saíam a rastejar de cortiços enlameados; de pardieiros feitos de caixas de comida; de caves de fauces abertas sob penedos em socalco; de fendas na terra. Em cinco minutos, a solidão fúnebre e o silêncio do lugar desapareceram, e uma multidão pedinte, grunhidora e gritadora lutava em torno das patas dos cavalos e bloqueava-nos o caminho. “Bucksheesh! bucksheesh! bucksheesh! howajji, bucksheesh!” Era Magdala de novo, só que aqui o brilho dos olhos infiéis era feroz e cheio de ódio. A população totaliza duzentas e cinquenta pessoas, e mais de metade dos cidadãos vive em caves nas rochas. O lixo, a degradação e a selvajaria são a especialidade de Endor. Já não nos pronunciamos sobre Magdala e Deburieh. Endor encabeça a lista. É pior que qualquer acampamento de índios. A colina é nua, rochosa, e não perdoa. Não se vê um tufo de erva, e há apenas uma árvore. Esta é uma figueira, que se ergue de forma precária no meio das rochas à entrada da caverna tenebrosa outrora ocupada pela verdadeira Bruxa de Endor. (…) uma hora depois, alcançámos Nain, onde Cristo ressuscitou o filho da viúva. Nain é Magdala em menor escala. Não tem população que se veja. A cem jardas está, tanto quanto posso dizer, o cemitério original; as pedras tumulares estão tombadas, o que é o costume judeu na Síria. Penso que os muçulmanos não os autorizam a ter pedras tumulares erguidas. (…) De seguida, chegámos a uma antiga cidade em ruínas no alto de uma colina, a antiga Jezreel.
Cap 52, nas proximidades de Jerusalém:
À medida que avançávamos, o sol ficava mais quente, e a paisagem tornava-se mais rochosa e nua, mais repulsiva e tenebrosa. Não poderia haver mais fragmentos de pedra espalhados pelo solo nesta parte do mundo, mesmo que cada dez pés quadrados da terra fossem ocupados, desde tempos imemoriais, por estabelecimentos distintos e separados de pedreiros. Mal se via uma árvore ou um arbusto em qualquer lado. Mesmo a oliveira e o cacto, esses amigos solícitos do solo imprestável, quase desertaram da região. Não há paisagem mais cansativa à vista que esta que delimita as cercanias de Jerusalém. A única diferença entre as estradas e o terreno circundante é, talvez, que há mais pedras nas estradas que nos terrenos à volta. (…) Finalmente, bem já dentro do meio dia, eis que um antigo pedaço de muro, e umas arcadas meio demolidas começaram a delinear o caminho — subimos mais uma colina, e todos os peregrinos e todos os pecadores lançaram os chapéus ao ar! Jerusalém!
Visão de Jerusalém:
Debruçada das suas colinas eternas, branca e sólida nas suas cúpulas, um casario compacto cintado de altas muralhas cinzentas, a cidade venerável brilhava ao sol. Tão pequena! Sim, não seria maior do que uma vilória americana de quatro mil almas, e não maior do que uma vulgar cidade da Síria de trinta mil. Jerusalém tem apenas catorze mil habitantes.
Cap. 53, descrição de Jerusalém:
Um caminheiro veloz poderia percorrer, pelo exterior, as muralhas de Jerusalém e dar uma volta completa à cidade numa hora. Não sei como fazer entender de outro modo o quão pequena ela é. (…) A população de Jerusalém é composta de muçulmanos, judeus, gregos, latinos, arménios, sírios, coptas, abissínios, católicos gregos, e um punhado de protestantes. Uma centena desta última seita é o que resta agora neste lugar de nascimento do Cristianismo. Os belos tons de nacionalidade que constituem a lista acima, e as línguas por eles faladas, são demasiado numerosas para serem mencionadas. Parece-me que todas as raças e cores e línguas da terra devem estar representadas nas catorze mil almas que vivem em Jerusalém. Abundam andrajos, degradação, pobreza e sujidade, os sinais e símbolos que indicam a presença do poder muçulmano ainda mais do que a própria bandeira do crescente. Somos assaltados, em todo o lado, por leprosos, paralíticos, cegos, e idiotas, que conhecem apenas, ao que parece, uma única palavra de qualquer língua — o eterno “bucksheesh.” Ao ver a quantidade de humanidade aleijada, deformada e enferma que enxameia os lugares santos e obstrui os portões, pensar-se-ia que os dias antigos tinham voltado, e que o anjo do Senhor estaria para descer em qualquer momento para agitar as águas de Bethesda. Jerusalém é tristonha, sombria e sem vida. Não quereria viver aqui.
Cap. 56, visão global da Palestina:
De entre todas as terras que existem com um cenário deprimente, penso que a Palestina é a Princesa. As colinas são nuas, vazias de cor, sem forma que se note. Os vales são desertos sem encanto bordejados por uma vegetação rasteira, que tem o ar de se lamentar e estar de luto. O Mar Morto e o Mar da Galileia dormem no meio de uma vasta expansão de colinas e de planuras onde o olhar não repousa sobre um único tom agradável, sobre um único objecto notável, sobre uma única imagem suave e sonhadora no meio de uma atmosfera púrpura ou pontilhada pela sombra de umas nuvens. Cada contorno é duro, cada detalhe distinto, não há perspectiva — a distância não produz, aqui, encantamento. É uma terra sem esperança, tenebrosa, de coração desfeito. (…) Nazaré está ao abandono; naquele vau do Jordão pelo qual as hostes de Israel entraram na Terra Prometida cantando canções de júbilo, há agora um acampamento esquálido de fantasmáticos beduínos do deserto; Jericó, a amaldiçoada, está hoje uma ruína a desfazer-se, ainda mais do que a deixou o milagre de Josué há três mil anos atrás; Belém e Betânia, na sua pobreza e na sua humilhação, nada têm em si agora que nos lembre que mereceram outrora a alta honra da presença do Salvador; a depressão de terreno onde os pastores guardavam os seus rebanhos à noite, e onde os anjos cantaram a Paz na terra aos homens de boa vontade, não é hoje guardada por nenhuma criatura (…).
Muhammad I
Christoph Luxenberg é o pseudónimo de um arabista que adquiriu notoriedade ao publicar, em 2001, um livro sobre as raízes siro-aramaicas do Corão: Die syro-aramäische Lesart des Koran – Ein Beitrag zur Entschlüsselung der Koransprache. Esta obra, que teve uma segunda edição expandida em 2004, e foi traduzida para inglês em 2007 com o título The Syro-Aramaic Reading of the Koran: A Contribution to the Decoding of the Language of the Qur’an, representa uma contribuição contemporânea decisiva para a reavaliação histórico-científica da natureza original do Corão e, por implicação, do Islão propriamente dito.