A genealogia de Jesus

Não parece que, em Portugal, a blasfémia esteja já prevista no Código Penal. Sendo assim, estou à vontade para dar uma modesta contribuição.

Ora leiam as primeiras páginas do Sepher Toldoth Yeshu (= O livro da geração de Jesus), um clássico da literatura judaica, fortemente censurado pela igreja. A edição que uso — há diversas edições medievais, nem sempre similares — foi publicada por G.W. Foote e J.M. Wheeler, em 1885, em Londres. Foote, que passara pouco tempo antes doze meses na cadeia por blasfémia, achou prudente publicar a sua tradução dos versos 11 a 15, não em inglês, mas em latim.

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George Albert Wells

Wells

Eu quero que saibam, irmãos e irmãs, que o evangelho que eu prego não é de origem humana. Eu não o recebi de nenhum homem, nem mo ensinaram. Pelo contrário, recebi-o por revelação de Jesus Cristo (Gal. 1: 11-12)

Deus, que me separou desde o ventre da minha mãe e me chamou pela sua graça, quis revelar o seu Filho em mim (Gal. 1: 15-16)

Há sempre um livro no nosso caminho. Desta vez o livro, esquecido na prateleira mais baixa da zona cavernosa da livraria Leitura, no Porto, tinha um título estranho e desafiador: “Did Jesus exist?” O autor dava pelo nome de George Albert Wells, que se identificava, na contracapa, como professor de alemão no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e autor de um outro livro, publicado em 1971, “The Jesus of the Early Christians”.

A capa era alaranjada e simples. A obra, de umas 250 páginas em tipo pequeno e entrelinhagem densa, fora publicada em 1975, pela editora Pemberton, da augusta cidade de Londres, Inglaterra.

“Did Jesus exist?” perguntava, com um arrojo todo feito de prudência, se Jesus existira. Eu lera de facto, algures, que havia uns pândegos que diziam que Jesus não tinha existido. Mas esses excêntricos, asseguravam as minhas leituras, eram umas criaturas extraviadas, a maioria delas impulsionada por um pathos anticristão contaminado por ideologias ateias e pelo ódio ao divino, ou então — e esta era a explicação mais benigna — meramente interessados em procurar notoriedade por via do escândalo editorial. Em todo o caso, suficientemente ignorantes e incompetentes para desmerecerem a atenção dos especialistas.

Claro que Jesus existira. O Messias era, aliás, uma das pessoas mais bem atestadas na antiguidade, tão ou mais até do que Júlio César ou Alexandre Magno. Havia, por um lado, a confirmação mutuamente reforçadora dos evangelistas, unânimes em descrever o calcorrear, por um Jesus itinerante, das estradas poeirentas da Palestina no tempo do procurador romano Pôncio Pilatos, e, por outro lado, o testemunho de Paulo, que não conhecera Jesus na carne, mas que privara em Jerusalém, apenas três anos depois da sua revelação pessoal – certamente antes de 40 DC – com os pilares da Igreja nascente, Cephas e Tiago, o “irmão do Senhor”, como ele escreve peremptoriamente na sua epístola aos Gálatas 1:18-19: “Então, após três anos, fui a Jerusalém, para conhecer Cephas, e fiquei com ele 15 dias. E não vi nenhum dos outros apóstolos, excepto Tiago, o irmão do Senhor.” E havia ainda o testemunho de Flávio Josefo, o historiador judeu que, em 93 ou 94 DC, menciona Jesus por duas vezes nas suas “Antiguidades Judaicas”. E as referências a Jesus em Tácito, em Suetónio e em Plínio, o Jovem, escritores romanos do início do séc. II.

Por alto, Jesus mostrava-se umas das personagens históricas mais referidas e mais bem atestadas da época. Poder-se-ia discordar sobre a natureza da sua missão, ou sobre as peripécias da sua vida, mas não sobre a sua existência. Albert Schweitzer, por exemplo, no seu monumental estudo sobre a busca do Jesus Histórico, depois de demolir as imagens de Jesus construídas por todos os especialistas dos séculos XVIII e XIX, de Reimarus a Wrede, nem por uma só vez insinua que Jesus possa não ter existido, embora escreva, no epílogo dessa mesma obra, que “O Jesus de Nazaré, que surgiu na vida pública como o Messias, que pregou a ética do Reino de Deus, que instaurou o Reino dos Céus na terra, e morreu para consagrar finalmente a sua obra, nunca existiu.” (The Quest of the Historical Jesus, 2ª edição inglesa, 1911, pág. 396). Não obstante esta conclusão negativa, Schweitzer despacha, em meia dúzia de parágrafos, Bruno Bauer, cuja negação da historicidade de Jesus é interpretada como o fruto de uma decadência metodológica do grande teólogo alemão, que, no declinar da sua carreira, terá abandonado qualquer “intenção de seguir um método histórico (…)” (idem, págs. 157-58). Por outras palavras, Bruno Bauer ficara senil.

Esta conclusão de Schweitzer é típica dos especialistas do Jesus Histórico. Os mais honestos reconhecem que a evidência documental é magra e discutível, que os especialistas que os antecederam se limitaram a construir um Jesus à imagem e semelhança das suas próprias convicções, e que o Jesus assim construído é uma entidade imaginária, baseada em material escasso e de legitimidade duvidosa. Por exemplo, os evangelistas têm interesses teológicos próprios, patentemente divergentes entre si, Paulo a sua imagem do “Cristo Jesus”, uma emanação do Logos divino sem medida comum com o Filho do Homem dos sinópticos, a Epistola aos Hebreus um Cristo que é um sacerdote celeste da ordem de Melchizedek, manifestação de uma ‘high christology’ que, afirmam alguns, provém de uma tradição teológica centrada no culto do Templo e preservada em correntes semi-subterrâneas do judaísmo (Margaret Barker, The Great Angel). Se os textos coevos se afastam assim tanto uns dos outros na imagem que apresentam do Jesus histórico, que dizer do esforço dos modernos para discernir, através do nevoeiro denso dos séculos, a verdadeira figura do Messias?

Há, de facto, Jesuses para todos os gostos. Há naturalmente o Jesus, Filho de Deus encarnado, que ressuscitou ao terceiro dia. Mas há igualmente o Jesus camponês revolucionário (John Dominic Crossant), o Jesus opositor de Roma (S.G.F. Brandon), o Jesus hassíd galileano (Geza Vermes), o Jesus mago (Morton Smith), o Jesus sábio cínico (Burton Mack), o Jesus pretendente davídico (Hugh Schonfield), o Jesus sábio rabínico (Hyam Maccoby), o Jesus profeta apocalíptico (Bart Ehrman), o Jesus sacerdote essénio (Barbara Thiering), o Jesus anunciador equivocado do reino de Deus (Albert Schweitzer, sim o mesmo Schweitzer), o Jesus visionário gnóstico (Margaret Barker), etc. São todos diferentes, mas todos, à sua maneira, são supostamente existentes, remetendo em última instância para um núcleo alegadamente real, o Jesus da História. Ou, como Schweitzer conclui num protesto final de arrebatamento emocional, mas que é, ao mesmo tempo, uma confissão de impotência cognitiva, “o erro foi supor que Jesus poderia vir a significar mais para o nosso tempo, entrando [nós] nele como um homem igual a nós. Isso não é possível. Em primeiro lugar, porque um tal Jesus nunca existiu. Em segundo lugar porque, embora o conhecimento histórico possa, sem dúvida, introduzir uma maior clareza numa vida espiritual já existente, não pode trazer a vida espiritual à existência”. E ainda: “Jesus significa algo para o nosso mundo porque uma poderosa força espiritual brota Dele e flui igualmente até ao nosso tempo. Este facto não pode ser abalado nem confirmado por uma qualquer descoberta histórica. É o fundamento sólido do Cristianismo” (idem, pág. 397). Ou seja, Jesus está dentro de nós, não fora. A História não tem nada a dizer sobre ele.

No século XIX, alguns especialistas, como os alemães Bruno Bauer e David Friedrich Strauss, ou o holandês van Manen, tinham negado a existência histórica de Jesus, ou chegado muito perto dessa negação. No início do século XX, outros autores, como Arthur Drews (1910), J.M. Robertson (1903), ou Paul Couchoud (1939), retomaram a ideia, procurando mostrar que Jesus era uma figura lendária construída a partir de mitemas tradicionais da especulação religiosa hebraica ou pagã. Mas a hipótese da natureza mítica de Jesus – o “Jesus mítico”, como se tende a dizer actualmente – de alguma maneira passou para segundo plano no longo período de quase setenta anos entre o início da 1ª Grande Guerra e o último terço do século XX. Não fora apenas a ideia que deixara de ter defensores; passara a ser considerada despropositada e de análise desnecessária. “Não vale a pena discutir o que é patentemente absurdo, passemos adiante!”

É aqui que entram G.A. Wells e o seu “Did Jesus exist?” O livro é denso e articulado, de uma erudição impressionante. No primeiro capítulo Wells examina e neutraliza, com competência e objectividade, os supostos testemunhos não-cristãos relativos à figura de Jesus e, sobretudo, o alegado testemunho de Josefo, cujo famoso Testimonium ele considera uma interpolação óbvia. Nos capítulos 3 a 7 discute os evangelhos e as suas contradições. E mostra, metodicamente, o carácter narrativamente ficcional destes textos. Como Guignebert, mas com o apport da evidência entretanto acumulada pelos resultados de meio século de averiguações críticas. Nenhum Jesus coerente, pior, nenhum Jesus minimamente consensual emerge dos evangelhos. Mas a ideia-chave da obra, a sua pièce de résistance, é a análise, no segundo capítulo, do ‘Cristo Jesus’ de Paulo, a testemunha mais primitiva, e portanto a mais próxima dos hipotéticos eventos. As epístolas de Paulo, as tradicionalmente consideradas autênticas pela exegese maioritária – as quatro “hauptbriefe” (Romanos, Gálatas, 1 e 2 Coríntios), e as epístolas 1 Tessalonicences, Filipenses e Filémon – são metodicamente examinadas por Wells neste capítulo, em busca da imagem de Jesus em Paulo e, como não podia deixar de ser, de qualquer evidência de que, para Paulo, Jesus seria um existente contemporâneo.

As conclusões: a ignorância ou omissão de Paulo sobre o Jesus terrenal é espantosa. Citando Bornkamm, Wells nota que “Paulo em lado nenhum fala do rabi de Nazaré, do profeta e do fazedor de milagres que comeu com cobradores de impostos e pecadoras, ou do seu Sermão da Montanha, das suas parábolas do reino de Deus, e dos seus encontros com fariseus e escribas. As suas epístolas nem sequer mencionam a Oração do Senhor. (…) E [Paulo] nada diz sobre os choques entre Jesus e as autoridades judaicas – ou mesmo romanas. Não menciona nenhum dos milagres que Jesus terá supostamente realizado, nem atribui a Jesus nenhum dos ensinamentos éticos mencionados nos evangelhos. (…) Paulo não só não menciona os milagres de Jesus, mas parece mesmo negar que ele tenha produzido um qualquer desses ‘sinais’: ‘Os Judeus pedem sinais e os Gregos procuram sabedoria, mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios’ (1 Cor. 1:22). Nem poderia Paulo ter conhecido nenhuma das instruções de Jesus para baptizar homens por todo o lado (Mt. 28:19); de outro modo ele não poderia ter declarado que ‘Cristo não me mandou baptizar’ (1 Cor. 1:19).” (Wells, Did Jesus exist?, págs. 18-20)

A lista de omissões de Paulo — os silêncios de Paulo sobre Jesus — continua inexoravelmente e estende-se aos pormenores da sua morte. Paulo não se refere uma só vez a Jerusalém, Pilatos, Judas, o Calvário, os discípulos, ou Maria, nem menciona as circunstâncias da execução ou da ressurreição. A ‘traição’ de Jesus, aliás, não existe para Paulo, que se refere ao momento como uma ‘entrega’ (1 Cor. 11:23), em grego ‘paradidomi’, traduzido habitualmente nas nossas Bíblias por ‘foi traído’, mas que em Paulo significa, como dissemos, ‘foi entregue’, verbo que o apóstolo dos gentios usa com esse mesmo significado na epístola aos Romanos para designar a ‘entrega’ por Deus do seu próprio filho: ‘Ele [Deus] não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-o [paredôken] por todos nós’ (Rom. 8:32). Do mesmo modo, para Paulo, Jesus não foi morto por judeus ou romanos, nunca mencionados, mas por potências celestes, anjos maus, potências e ‘principalidades’ (archons) das esferas celestes intermédias, os verdadeiros “governantes desta era” (1 Cor. 2:8).

A tese de Wells é, em síntese, a seguinte: “O Jesus das epístolas de Paulo (as epístolas mais antigas do Novo Testamento e, portanto, os documentos cristãos mais antigos em existência) é, em certos aspectos, incompatível com o Jesus dos evangelhos; nem Paulo, nem os seus predecessores cristãos que ele tenta assimilar, nem os professores cristãos que ele nelas ataca, estão preocupados com tal pessoa; e o mesmo é verdade das outras epístolas do Novo Testamento escritas antes do final do primeiro século.” (idem, pág. 3). “Paulo acreditava num Jesus sobrenatural [i.e., não humano], que assumira a forma humana e fora crucificado na terra sob instigação de poderes sobrenaturais maldosos. Paulo manifestava um profundo desinteresse pelo quando ou como isto acontecera — ele não lhe atribui uma localização histórica — porque estava convencido que Jesus vivera uma vida obscura na terra; tão obscura que, até que manifestasse o seu verdadeiro poder na ressurreição, mesmo os demónios tinham sido incapazes de o reconhecer pelo que ele era: tivessem eles sabido a verdade, ‘não teriam crucificado o senhor da Glória’ (1 Cor. 2:8). Ao vir à terra, ele tinha-se ‘esvaziado a si-próprio’ da sua forma divina, e humildemente assumira ‘a forma de um servo’ (Filipenses 2:7). A sua vida culminara numa morte vergonhosa e ignominiosa na cruz em ‘fraqueza’ (2 Cor. 13:4). A fraqueza e a a obscuridade do Jesus terrestre está igualmente implícita na insistência de Paulo — num contexto em que ele faz a ‘escravidão’ sinónima do manter a lei judaica — que Jesus ‘nasceu de uma mulher, nasceu sob a lei’ (Gal. 4:4). Paulo não sabe quem eram os inimigos humanos de Jesus, e quando foi ele crucificado.” (idem, pág. 97).

Tudo isto que Paulo sabe (e ignora) resulta de uma revelação pessoal de Deus a ele próprio [Paulo], não da participação nos eventos, ou da consulta de testemunhas oculares ou de herdeiros directos desses testemunhas. Os apóstolos (e não os discípulos, termo que Paulo nunca usa) com quem Paulo se cruza, e a quem com frequência se opõe, são, tal como ele, receptores de revelações pessoais. Mesmo os Pilares de Jerusalém — Cephas (=Pedro?) e Tiago, por ele considerados autoridades da Igreja — são em última instância os depositários de uma revelação, não os companheiros de aventura de um Jesus recém-executado no Calvário por ordem de Pilatos. Tiago, a quem Paulo chama em determinado momento o ‘Irmão do Senhor’, não é um irmão carnal, mas apenas o membro mais importante, o ‘primus inter pares’ de um grupo talvez designado por Paulo ‘Os irmãos do Senhor’. “Paulo queixa-se (1 Cor. 1: 11-13) de facções cristãs que ostentam os títulos de ‘de Paulo’, ‘de Apollos’, ‘de Cephas’ e — o mais significativo de todos — ‘de Cristo’. Se havia em Corinto um grupo chamado ‘os de Cristo’, pode bem ter havido um em Jerusalém chamado ‘os irmãos do Senhor’, que não teriam de Jesus uma experiência mais pessoal do que o próprio Paulo.” (idem, pág. 21).

Em 1975, G.A. Wells acendeu um fósforo que, distraidamente, deixou cair na terra. Quase sem se dar conta, provavelmente sem desejar que tal acontecesse, incendiou a pradaria. Talvez que a terra estivesse seca e a vegetação desejosa de um incêndio? Talvez. É bem sabido que a natureza se regenera pelo fogo, como disse há muito tempo Heraclito de Efeso, cidade que Paulo calcorreou na sua missão como um Cristo Redivivus perdido entre os gentios.

Charles Guignebert

Jesus

Há muitos anos atrás, passeando por uma livraria do Porto, deparo com um livro já vetusto e de aspecto ignorado: “Jesus”, de Charles Guignebert. Qualquer coisa no livro atraiu a minha atenção, em princípio nada interessada no assunto ou na personagem. Talvez fosse a colecção em que encontrava inserido, L’Évolution de l’Humanité, uma série de magníficas monografias históricas editadas ao longo de muitos anos por Henry Berr para a Renaissance du Livre. Ou então terá sido a leitura rápida de meia dúzia de parágrafos aflorados casualmente pela minha mão meio distraída. Ou o preço irrisório, de antes da guerra (o livro era de 1933, creio). Não importa; a verdade é que comprei a obra e fui para casa lê-la. Devorei-a de uma assentada.

Foi o início de uma paixão que dura até hoje. O interesse pela estranha persona de Jesus, o Nazareno, nunca mais me abandonou. Como muitos outros portugueses da época, nascera em família católica, frequentara a catequese, lera meia dúzia de passagens seleccionadas dos evangelhos, daquelas que se ouvem repetir nas homilias dominicais, e esquecera, chegado o momento, a religião. Aos doze anos era agnóstico, aos catorze ateu. Darwin e a mecânica quântica bastavam-me. Aos dezassete, a leitura de Kant na Universidade fora o coup-de-grâce: Jesusito/já te tenho dito/que não é bonito/andares-me a enganar. Chora agora/Jesusito chora/que me vou embora/pra não mais voltar.

Digo isto para que não pensem que a leitura do Jesus guignebertiano representou uma recaída na minha irreligiosidade. Nada disso. Guignebert era um céptico, um historiador crítico, a fina flor do criticismo bíblico francês do seu tempo. Não era um teólogo com uma agenda oculta disfarçado de historiador. “Jesus” era obra séria, de inapelável espírito analítico, embora aqui e ali o autor não ocultasse a sua simpatia de libertário pelo rabboni galileano. Eu simpatizei também, e fiquei cheio de pena que os seus descendentes tivessem desfigurado sem escrúpulos a personagem de Jesus: esse estúpido e ignorante Pedro, incapaz de entender a mensagem, por mais simples que ela fosse, os irmãos Boanergues, apenas interessados em assegurar para si um estatuto de privilégio na hierarquia da igreja que se avizinhava, e sobretudo esse inominável Paulo que, sem conhecer Jesus sequer na carne, se apoderara da ideia de redenção pela bondade e a transformara numa alucinação fanática e intolerante.

Guignebert era um escritor fantástico e um analista minucioso. Eu não fazia ideia que pudesse haver tanta coisa por detrás de cada verso dos evangelhos, tanto enigma e tanta delícia sherlockholmiana. Ou que as contradições entre Marcos e Mateus e Lucas permitissem reconstituições interpretativas que, nem pelo facto de serem, e provavelmente para sempre terem de permanecer, do domínio da especulação, fossem ao mesmo tempo tão iluminativas do espírito humano e da sua capacidade redaccional. Ou que o evangelho de João fosse tão diferente e de outra galáxia. Ou que o autor do Actos metesse os pés pelas mãos e contradissesse em tantos lugares o testemunho de Paulo nas suas epístolas. Ou que as epístolas – as de Paulo e as outras – fossem um buraco negro histórico. Ou que se soubesse tanto e ao mesmo tempo tão pouco sobre a vida e as palavras do fundador da mais importante religião da História Humana.

Ou que, para concluir, houvesse um oceano de católicos à minha volta e nem um só fizesse ideia do que estava a perder com a sua ignorância quase obscena dos escritos fundacionais da sua religião. As pessoas, parecia-me, iam ao cinema estremecer com Hitchcock e nem sequer sonhavam que tinham um manancial de enredos policiescos ao alcance da mão, na mesa de cabeceira. Iam à missa, ouviam o padre e passavam ao lado do mistério. O próprio padre, era-me evidente já então, passava ao lado do mistério. Era pago para o fazer.

Charles Guignebert iniciou-me no mistério, com doçura, elegância e benevolência. Nunca mais esqueci o livro, entretanto perdido na voragem da vida. Nem esqueci Jesus, o enigmático, o caleidoscópico. Ou, quiçá, o inexistente? Jesus, o irónico?

Obrigado para sempre, Charles. Bem hajas.