A Coisa

[Um texto de Desidério Peixoto, escrito à hora do almoço numa tasquinha do Bairro Alto, num dia cinzento de Inverno]

Dou-lhe este nome, à falta de outro melhor. Poderia chamar-lhe repulsa, ou fuga, ou recusa, ou medo, ou abafação, ou, o que seria porventura o mais próximo dos nomes, estranheza. Mas a verdade é que a Coisa não é nenhum deles, tendo ao mesmo tempo um pouco da cada um, numa mistura que é diferente e mais do que a soma de todos.

Conheço a Coisa desde tempos imemoriais. Desde que as mulheres, então simples raparigas, começaram a ser algo de especial para mim, e não apenas pessoas comuns na paisagem ordinária, que a Coisa me visita com regularidade. Chega sem aviso prévio, sempre rápida e de forma decisiva. Limpa, como um cirurgião do coração que corta com a consciência da delicadeza e da necessidade do golpe. A Coisa, um bisturi do sentimento.

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Deitar fora

Oxyrhynchus é uma antiga cidade egípcia, situada na margem esquerda do rio Nilo, a cerca de 160 km a sul da cidade do Cairo. As lixeiras da urbe, onde era hábito vazar os papiros usados e irrecuperáveis, têm sido uma quase inesgotável fonte de informação para os arqueólogos sobre a vida cultural e pessoal dos seus habitantes e, por implicação, sobre a existência humana no mundo mediterrâneo entre 300 B.C.E. e 700 C.E.

Mais de 100000 papiros estão guardados em Oxford, a maioria à espera de leitura e publicação. Muitos outros ainda encontram-se em bibliotecas e instituições por esse mundo fora.

Transcreve-se a seguir o texto de um papiro (P. Oxy IV. 744G, ver imagem anexa), que é uma carta particular, escrita por um certo Hilarion, trabalhador em Alexandria, a sua mulher, Alis, residente em Oxyrhynchus.

A carta é datada pelo próprio de 16 de Junho de 1 B.C.E. (ou 1 antes de Cristo, se preferirem). Nela, como podem ler, Hilarion exprime o seu carinho pela esposa e, de caminho, aconselha-a (ou instrui-a ?) sobre o que fazer com o recém-nascido que ambos esperam. As notas a seguir destinam-se a facilitar a compreensão do texto.

Leiam nesta carta o que quiserem. É uma mancha de Rorschach.

………………………………………
Hilarion a Alis, a sua irmã, (1) muitas saudações. Também a Berus, minha senhora, (2) e a Apollonarin. Saibam que ainda estou agora em Alexandrea [sic]. Não se aflijam se eu neste regresso geral (3) permaneço em Alexandren. Rogo-te e suplico-te, toma conta da criança pequena. Assim que recebermos o salário, eu mandar-to-ei. Se tu … [texto obscuro aqui] tiveres parido, se for um rapaz, deixa que [viva?](4); se for rapariga, enjeita-a (5). Tu disseste a Aphrodisias, “Não me esqueças” (6). Como posso esquecer-te? Rogo-te, pois, que não te preocupes. No ano 29 de César, Pauni 23. (7)
………………………………………

(1) Alis é mulher de Hilarion. O tratamento por “irmã” era carinhoso, embora neste caso pudessem ser igualmente irmãos. O casamento entre irmãos era comum no Egipto nesta época.
(2) Uma forma de tratamento respeitoso, dirigido a alguém que se queria obsequiar. Talvez Berus fosse uma dama de condição.
(3) Provavelmente uma referência ao regresso dos companheiros de trabalho de Hilarion a Oxyrhynchus.
(4) Ou seja, fica com com ele, guarda-o.
(5) ἔκβαλε (ekbalé). De ἐκβαλεῖν, deitar fora, expulsar.
(6) Subentende-se que se trata de um recado da mulher transmitido por Aphrodisias a Hilarion.
(7) A data mencionada é, no nosso calendário, 17 de Junho de 1 B.C.E.

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At tu, Catulle, destinatus obdura

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Miser Catulle, desinas ineptire
et quid vides perisse perditum ducas.
Fulsere quondam candidi tibi soles,
cum ventitabas quo puella ducebat
amata nobis quantum amabitur nulla.
Ibi illa multa cum iocosa fiebant,
quae tu volebas nec puella nolebat,
fulsere vere candidi tibi soles.

Nunc iam illa non vult: tu quoque impotens noli
nec quae fugit sectare, nec miser vive,
sed obstinata mente perfer, obdura.
Vale puella, iam Catullus obdurat,
nec te requiret nec rogabit invitam.
At tu dolebis, cum regaberis nulla.
Scelesta, vae te, quae tibi manet vita?
Quis nunc te adibit? Cui videberis bella?
Quem nunc amabis? Cuius esse diceris?
Quem basiabis? Cui labella mordebis?
At tu, Catulle, destinatus obdura.

…………………………..

Pobre Catulo, desiste da tolice,
e o que vês cessado, perdido considera.
Brilhavam outrora para ti os alvos sóis,
Quando ias onde a tua amada te levava,
Amada por ti quanto nenhuma será.
Ali com ela muitas graças se faziam,
que tu querias e que ela não negava.
Brilhavam de facto para ti os alvos sóis.

Agora já não quer: impotente, tampouco queiras,
Nem persigas a que foge, nem vivas triste,
Mas com obstinada mente segue, resoluto.
Adeus amada, Catulo fez-se duro,
Não te procurará nem rogará em vão.
Mas tu sofrerás, não ser rogada por ninguém.
Ai de ti, celerada, que te tratá a vida?
Quem te visitará? Quem te verá bela?
Quem ora amarás? De quem dirão que és?
Quem beijarás? De quem os lábios morderás?
Mas tu, Catulo, resoluto perdura.

Gaius Valerius Catullus [Carmen 8]