Desloco-me vertiginoso pela estrada larga de alcatrão, metáfora da vida. A estrada de alcatrão, que perfeição geométrica, que certeza garantida de destino. As estradas modernas, as auto-estradas, são, a esse respeito, insuperáveis na sua implacabilidade higiénica. Sem buracos, curvas, obstáculos emboscados no caminho do viajante. Como o tempo que nos leva até à morte, as auto-estradas conduzem-nos sem uma hesitação, sem solavancos, sem especiais favores para os ricos e particulares humilhações para os pobres. Uma paragem aqui e acolá, de longe em longe, o bilhetinho da portagem, e lá vamos todos nós direitos ao destino. No anonimato do percurso. As auto-estradas são a ausência de metafísica e de mistério da existência. São a cura para o mal, o mal de amor e o mal de desespero. Quando a vida me dói, meto-me numa auto-estrada e zap. Meia hora depois estou curado. Viajando na estrada de nada a caminho de lugar nenhum.
Hoje a auto-estrada está, porém, pensativa. Não a reconheço. Invulgar momento, este. Terá sido da chuva que caiu todo o dia, do cheiro do ozono no ar, não sei. A estrada brilha húmida, reflecte o céu escuro, devolve-me o olhar como um poço de insondável mistério, ela que não tem mistério nenhum. Se calhar o mistério está em mim, hoje, esta noite.
Acelero. 160, 180, 200, 220, embalo na descida, uma longa curva para a esquerda, a entrada na ponte magnífica, visão rápida da vila que se estende pela planície, como a aproximação à pista de um avião nas planuras brasileiras. Lembra-me Vitória da Conquista, à noite. O motor do carro zumbe, protesta, ralha comigo baixinho. Que ralhe, a noite é minha mãe.
Subimos agora. Por momentos, na distracção da memória súbito alheada, o carro ia falhando o seu caminho, é preciso voltar à direita, sim, é precisamente aqui, neste ponto. A complicação da topografia, o emaranhado destas estradas devolve-me ao presente. Agora sei onde me dirijo. E com essa consciência do presente vem a dor, a dor imensa que se abate sobre mim. Socorro, noite, socorro, estrada. Socorro.