Imortalidade V

Estamos sentados na esplanada do ex-D. Manuel, a lua recortada contra o céu escuro por cima do ex-Hotel Tocaio. Na Bila por estes dias tudo se tornou o ex de qualquer outra coisa que não existe mais, que nos abandonou. O meu amigo A. acende mais um Marlboro. Tenho saudades do aroma do tabaco e da carícia do fumo dentro das entranhas. Divago. O tempo passa. A lua vai-se deslocando imperceptivelmente no céu da Avenida, traçando o seu percurso solitário ao longo da banda estreita do Zodíaco. Ocorre-me de repente que esta lua não passará nunca.

– Sabes, digo a A., não há morte. Eu não morrerei. Viver quer dizer existir, e a morte é a não-existência. Uma impossibilidade para quem existe, como eu, que existo agora mesmo. Da existência não se produz a não-existência e vice-versa. Logo, eu sou vivo para sempre. Imortal.

A. dá uma fumarada no cigarro, e exclama:

– Arrump counff.

O que ele quis dizer foi “é uma impossibilidade, concedo.” O meu amigo A. abrevia, quando está comigo, as suas elocuções, usando uma espécie de estenografia oral. ‘Arrump’ significa ‘impossível’ e ‘counff’ quer dizer ‘de facto’. Muitos anos de convivência entre nós permitem-nos comunicar desta forma sintética, mas de uma eficácia eloquente. O estimado leitor terá de se amanhar com a minha tradução, na qual, como sempre que se traduz, algo se perde do sentido original. Entre parêntesis está o que efectivamente dissemos.

O diálogo prosseguiu.

Eu: – Logo, a morte é uma ilusão. (Murf arg.)

A: – E esta lua nunca desliza no céu. (Cuf cuf.)

Eu: – É a lua anti-Heraclito. (Inf kruum)

A: – Heidegger tem razão, Sein e Zeit são o mesmo. (Hei tshuff)

Eu: – Alguma coisa se perdeu quando os gregos reduziram o Ser ao ser presente, pois o presente não existe. O presente é o instante. Infinitésimo. (glorb bas tuk)

A: – Não existe o instante, apenas a continuidade do tempo, como uma fita de Moebius. (Thss lunng)

Eu: – O Ser é uma esfera perfeita. (Aum um)

A: – Bebes uma bejeca? (Oi?)

Infelizmente não posso, por razões médicas. Mas a lua não saiu do céu, do seu lugar por cima do ex-Hotel Tocaio, e amanhã cá estará de novo. E o Hotel também. A lua, essa moeda prateada de um valor incalculável, Nyarlathotep.

Nyarlathotep, teu nome é Plenitude e eu sou teu filho.

Amén. (Aim)

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Imortalidade IV

Há qualquer coisa na Rua das Pedrinhas que faz dela a quintessência da famosa Bila. É uma via obscura, perfilada por casas ao abandono, como sentinelas carunchosas, um carreiro por onde passam, faça dia ou faça noite, divindades sepulcrais. O terrível Nyarlathotep e o seu Olho. A Caçada Selvagem, a Wilde Jagt, a Cavalgada de Odin, o som de ossos e de cascos de cavalos a bater no empedrado. Quando a percorro sinto sempre um calafrio. Continuar a ler

Imortalidade III

Fecharam-nos o café da Avenida, na nossa triste Bila. De repente, sem aviso prévio, sem nos darem tempo a protestarmos ou a procurarmos solução. Uma noite ele lá estava, como sempre, a generosa porta aberta, a televisão discreta à esquerda de quem entra, a empregada brasileira pronta a servir-nos o café com um copo de água bem gelada, as fotografias de oleiros espalhadas nas paredes, a lembrar-nos que a vida é dura e frágil como uma pichorra de loiça negra de Bisalhães. Na noite seguinte, a porta cerrada, sem uma nota explicativa. Fechado. Foi uma oferta irresistível, dizem-nos mais tarde; um café a menos, uma hamburgueria a mais.

Lagartixa

Para mim, não é demasiado grave, há mais dois cafés nas redondezas, com tv e futebol. Não fumo, posso encostar-me num qualquer lugar com uma reserva mediana de oxigénio e pouco barulho. Mas para o meu amigo A., que fuma compulsivamente — quatro maços de Marlboro em cada dia — faz toda a diferença. Andámos por ali umas noites vagabundas, sem achar um rumo, como marinheiros à procura de taberna em porto hostil. Lá acabámos por arribar a um, numa rua mais acima, onde estamos desde então. Mas não é a mesma coisa: ruidoso, com uma tv sempre a bombar a bola, uma música de blues repetitiva, que nos põe febris e pessimistas e desestimula a cavaqueira, clientes alienos, de outros tempos e de outras freguesias, e uma tiragem de fumos mais do que suspeita e que nos deixa os olhos irritados e a garganta áspera.

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Imortalidade II

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Em conversa nocturna com A., ao lado da Capela Nova. Queixamo-nos de dores em lugares exóticos da nossa anatomia. Já não é só no baixo ventre, como costumava ser. Agora é no baixo ventre do baixo ventre, como se houvesse em nós uma criança minúscula prestes a nascer e esta viesse ao mundo sofrendo de uma maleita irremissível. É esta pelo menos a minha teoria, que eu desfio contemplando aquela fachada veneranda, que viu gerações de vilarealenses ilustres, todos eles indispensáveis para si próprios, nascerem e morrerem sem sombra de lamento dos vindouros. E vou-me eclesiasticando deste modo, perante o olhar sarcástico do meu amigo.

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Imortalidade

 

Niarlathotep

Faz seiscentos anos que um punhado de aventureiros de Vila Real, seguindo o seu alucinado chefe, Pedro de Meneses, se fixou em Ceuta. Aí esses expatriados lusitanos, cansados de contemplar por detrás das muralhas da fortaleza real o perfil do gigante de pedra a que os berberes chamam impropriamente Adrar Musa, a Mulher Morta, trataram de espalhar a sua melancolia, essa doença do baço que aflige os que estão longe dos seus, entregando-se a práticas obscuras e a amizades pouco recomendáveis.

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