Estamos sentados na esplanada do ex-D. Manuel, a lua recortada contra o céu escuro por cima do ex-Hotel Tocaio. Na Bila por estes dias tudo se tornou o ex de qualquer outra coisa que não existe mais, que nos abandonou. O meu amigo A. acende mais um Marlboro. Tenho saudades do aroma do tabaco e da carícia do fumo dentro das entranhas. Divago. O tempo passa. A lua vai-se deslocando imperceptivelmente no céu da Avenida, traçando o seu percurso solitário ao longo da banda estreita do Zodíaco. Ocorre-me de repente que esta lua não passará nunca.
– Sabes, digo a A., não há morte. Eu não morrerei. Viver quer dizer existir, e a morte é a não-existência. Uma impossibilidade para quem existe, como eu, que existo agora mesmo. Da existência não se produz a não-existência e vice-versa. Logo, eu sou vivo para sempre. Imortal.
A. dá uma fumarada no cigarro, e exclama:
– Arrump counff.
O que ele quis dizer foi “é uma impossibilidade, concedo.” O meu amigo A. abrevia, quando está comigo, as suas elocuções, usando uma espécie de estenografia oral. ‘Arrump’ significa ‘impossível’ e ‘counff’ quer dizer ‘de facto’. Muitos anos de convivência entre nós permitem-nos comunicar desta forma sintética, mas de uma eficácia eloquente. O estimado leitor terá de se amanhar com a minha tradução, na qual, como sempre que se traduz, algo se perde do sentido original. Entre parêntesis está o que efectivamente dissemos.
O diálogo prosseguiu.
Eu: – Logo, a morte é uma ilusão. (Murf arg.)
A: – E esta lua nunca desliza no céu. (Cuf cuf.)
Eu: – É a lua anti-Heraclito. (Inf kruum)
A: – Heidegger tem razão, Sein e Zeit são o mesmo. (Hei tshuff)
Eu: – Alguma coisa se perdeu quando os gregos reduziram o Ser ao ser presente, pois o presente não existe. O presente é o instante. Infinitésimo. (glorb bas tuk)
A: – Não existe o instante, apenas a continuidade do tempo, como uma fita de Moebius. (Thss lunng)
Eu: – O Ser é uma esfera perfeita. (Aum um)
A: – Bebes uma bejeca? (Oi?)
Infelizmente não posso, por razões médicas. Mas a lua não saiu do céu, do seu lugar por cima do ex-Hotel Tocaio, e amanhã cá estará de novo. E o Hotel também. A lua, essa moeda prateada de um valor incalculável, Nyarlathotep.
Nyarlathotep, teu nome é Plenitude e eu sou teu filho.
Amén. (Aim)