Soneto já antigo

Ontem à noite um amigo explicava-me que aquele orangista que tinha dito que nós, os portugueses, gastávamos o dinheiro que eles nos mandavam em putas e vinho verde até que tinha razão.

– A., disse eu depois de uma pausa, ele pode até ter razão (que não tem, apresso-me a acrescentar aqui). Mas há coisas que não se dizem.
– Verdade, verdade, repetiu o meu amigo, acendendo o octagésimo cigarro do dia. Ele há coisas que não se devem dizer.
– Mesmo que se pensem, disse eu.
– E que sejam verdade, confirmou ele.

A fachada de pedra do defunto Banco de Portugal, agora Qualquer Coisa Agrícola, olhou-nos com aprovação. Um cliente noctívago das francesinhas do Cardoso, que urinava os restos da cerveja no nicho do multibanco, também.

Subimos a rampa de São Pedro de regresso ao calor das nossas casas. Ao passar pela montra do Pai dos Pobres parámos por momentos a apreciar os produtos expostos.

– Não precisas de um porta-moedas, A.?
– Para quê?
– Sei lá. Podes precisar. As moedas tendem a cair para o forro do casaco pelo buraco dos bolsos.
– Melhor. De cada vez que viramos o forro, ficamos ricos.

E com esta metáfora da economia nacional nos fomos.

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Salazares até ao fundo

Há nos arredores da Bila uma aldeia pequena e muito pobre onde se faz desde tempos imemoriais uma olaria de barro escuro. A aldeia chama-se Bisalhães. No dia de São Pedro, que é o dia 29 de Junho, faz-se uma feira na Bila onde se expõem e vendem, na rua fronteira à Capela Nova, os produtos da aldeia. É uma tradição local, sustentada por cada vez menos fabricantes. Restam hoje, dizem-me, não mais de meia dúzia. A Câmara, num esforço de apoio à actividade, dispôs há uns anos atrás uns espaços abarracados numa espécie de avenida à entrada da Bila (tudo é uma espécie de avenida na Bila), para quem vem do Porto (na Bila tudo vem do Porto), e onde os turistas podem comprar umas peças da famosa olaria negra. Dizem que ficam bem em cima de um armário de cozinha, a dar o toque de rusticidade num tête-à-tête nonchalante com a porcelana Qing. Coisa chique.

Bisa cópia

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Aurantium Femina, sive Foetiferum

Adoro as laranjas de umbigo.

Toda a gente sabe (folgo com esta expressão) que as laranjas vieram da China, como sugere de passagem Leonard Cohen na sua Suzanne. Mas há as laranjas e há as laranjas de umbigo. Estas é que são. Ora sucede que os amigos brasileiros pensam que as laranjas de umbigo de todo o mundo são originárias da Baía, onde uma variedade importada de Portugal — a Selecta — terá sofrido, no início do século XIX, uma mutação acidental. Uns americanos, escrevendo em 1917, dizem que isso aconteceu em Cabula, um bairro da Baía (ou Bahía, como prefiro) e que o português proprietário da árvore terá disseminado a variedade umbílica (ver imagem anexa). A maioria dos americanos, na sua proverbial ignorância, acredita por seu lado que a laranja de umbigo, a que por lá se chama Washington Navel (O Umbigo de Washington), foi desenvolvida na California.

laranja 3

Sorriamos benevolentemente, caros compatriotas. Porque a gloriosa laranja de umbigo originou-se, não na Bahía ou na California,  mas na decadente Europa, e provavelmente em Portugal. O italiano Giovanni Baptista Ferrari mostra já, numa esplêndida obra de 1646, ilustrada por grandes artistas, como Nicolas Pussin e Guido Reni, e intitulada Hesperides, sive de malorum aureorum cultura et usu, uma ilustração de uma laranja de umbigo de origem portuguesa, e a que chama ‘Aurantium femina, sive foetiferum’. Aurantius é o latim para laranja (de Aurum=Ouro) e foetiferum quer dizer frutífero(a). Frutífera, logo feminina.

Batista Ferrari

Seja como for, portuguesa ou brasileira, longa vida à laranja! E, em especial, à variedade com umbigo ou com filhotes, a laranja-mulher, a melhor.

 

O DINHEIRO DINAMARQUÊS

anglo

Rudyard Kipling escreveu, em 1911, um poema intitulado Dane-Geld, em português ‘dinheiro [ou ouro] dinamarquês’. A expressão refere-se ao hábito que os anglo-saxões e os franceses tinham, na Idade Média, de entregar aos vikings um tributo em ouro para evitar que estes saqueassem as suas terras. Era, basicamente, um suborno ou um pagamento, por parte de urbanos instalados, aos rústicos por instalar. Lembro aqui este poema a propósito do que hoje se passa um pouco por todo o lado na velha Europa. E lembro-o também a propósito da nossa relação — nossa, quer dizer, dos portugueses — com certos parceiros abastados que nos pagam há muito tempo para sermos uns parentes de aldeia com o mínimo de maneiras à mesa. Continuar a ler

No Hospital

quarto cópia

I

Nos primeiros dois dias a dor cresceu devagar, mas não atribuiu importância ao facto. Dores destas tendem a aumentar, mas o organismo reage, faz o seu trabalho e regenera-se. Deixou, por isso, andar. Aguentou. Ao terceiro dia, porém, a dor crescera para além do expectável. No quarto dia tremia pela casa fora, abstendo-se de sair à rua com medo de colapsar. Por volta das cinco da tarde, rendeu-se. Enfiou as calças e um par de sapatos por cima das peúgas de lã, envolveu o corpo num casacão quente e tudo isto num anoraque cinzento escuro, meteu-se no carro e partiu, aos solavancos e com um terror velado na alma, para o hospital local. Um enorme edifício de sete andares, um paralelepípedo meio arruinado de tijolo desbotado e alumínio incaracterístico, uma antecâmara do Hades que se chamava pomposamente Hospital Distrital e que a população da pequena cidade de província ia odiando em golfadas de impotência, sem se atrever a confessar, por medo de represálias, o sentimento em voz alta. Porque não havia outro hospital na cidade, nenhum Póvoa ou Trofa, nenhum privado. Só havia aquela monstruosidade, que era importante não atiçar, esconjurando-o ou chamando-lhe nomes feios. Isso podia pô-lo de mau humor.

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A caminho da feira

Pela estrada fora,
Toc, toc, toc,
Marcha o jumentinho,
a cenoira à frente,
Os donos atrás.

jumentinho

Que róseos
Os donos,
Sorrindo venais,
Mungindo cabritas,
E outras que tais.

E anhos, bezerros,
E ovelhas tenrinhas,
Em autos de fé,
Das vacas lustrosas
Sai leite cremoso,
A juntar ao café.

E bodes, sisudos,
E severos toiros,
Mas todos tão lindos,
Oh tão lindos todos,

Vestidos prá feira,
Com canga bastante,
Zurzidos lá seguem,
Pela estrada fora,
Pela estrada adiante,
Contentes e fartos,
Nesta procissão.

O vaqueiro xuxa
Colhe o leite quente,
O mel das abelhas,
A carne e o sangue,
Curte a pele do gado,
Faz sapatos belos,

Vai à televisão.

Le Portugal

No seu livro de 2014, Threats of Pain and Ruin, o ensaísta inglês Theodore Dalrymple escreve a dado passo sobre Portugal, a propósito de um velho livro de viagens de 1956 e que ele encontrou em casa de uma amiga recentemente falecida. Este livro de viagens é o Le Portugal, de um escritor francês, Yves Bottineau, com fotografias de um tal Yan. Paris, edição Arthaud.

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