Geringonça

Francisco_de_Quevedo_(Pacheco)

 

O termo “geringonça”, tão popular e exultante em Portugal nos tempos que correm, não é de hoje. Dom Francisco Quevedo usa-o já, num poema presumivelmente escrito em 1625, para caricaturar o estilo poético do seu arqui-inimigo Luis de Gôngora. O cordobês tinha escrito Soledades em 1613, um longo poema no estilo espesso e afectado que fez a fama do autor e é um dos expoentes poéticos do Gongorismo. O poema de Quevedo – um soneto a que ele acrescenta um apêndice de sete versos – intitula-se assim “Receta para hacer soledades en un día”. Em suma, receita para poetar gongoricamente sem esforço.

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O Romance 85 de Francisco de Quevedo (tradução e explicação)

Um marido sofrido apresenta os seus títulos em competição com outro

Soltando verbos e nomes,                    1
à guisa de dicionário,
rompeu p’la casa da Morra,
coiceando, o Mochagão.

Cismaram-lhe que dom Lesmes,         5
aquele muitíssimo fidalgo,
que come de sopa em sopa,
e bebe de ramo em ramo, Continuar a ler

Um casado ri-se do adúltero que lhe paga o gozar com susto o que a ele lhe sobra

Dizem-me, Dom Jerónimo, que dizes
Que me pões os cornos com Ginesa;
Eu digo que me pões a casa e a mesa;
E, na mesa, capões gordos e perdizes.

E vejo que me pões também tapetes
Quando o calor pelo Outubro cessa;
Por ti minha bolsa, não a testa, pesa,
Ainda que, com ouro, a ornamentes.

Este argumento é forte e é agudo:
Tu pôr-me cornos imaginas; dest’ obra
Eu, porque o imaginas, te desnudo.

Mais corno é quem paga que quem cobra;
Ergo, aquele que me paga, é o cornudo,
O que, de minha mulher, a mim me sobra.

Francisco de Quevedo

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Fastio de um casado ao terceiro dia

Faz dois dias que casámos; hoje queria,
Dona Pérez, saber certas verdades:
Dizei-me: qual o número de idades
Que afunda o matrimónio num só dia?

Anteontem ainda, solteiro ser soía.
Hoje, já casado, duas mínimas vontades
Prometem um sem fim de anuidades
E mais de mil outroras de porfia.

Isto de ser marido um ano, meio,
Até aos mais valentes a alma esmaga:
Todo o quotidiano é muito e feio.

Mulher que dura um mês volve-se praga;
Por isso co’s diabos foi ditoso Orfeu,
Pois perdeu a mulher que teve em paga.

Dom Francisco de Quevedo, B 517

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A um homem de grande nariz

Era um homem a um nariz pegado,
Era um nariz superlativo,
Era um alambique meio vivo,
Era um peixe espada mal barbeado;

Era um relógio de sol mal encarado,
Era boca acima um elefante,
Era um nariz brigão e escrevente,
Um Ovídio Nasão mal narigado.

Era o esporão de uma galera,
Era uma pirâmide do Egipto,
As doze tribos de narizes era;

Era um naricíssimo infinito,
Enorme arquinariz, carranca fera,
Inchaço garrafal, purpúreo e frito.

Dom Francisco de Quevedo

Camões_por_Fernão_Gomes

Um soneto de Dom Francisco de Quevedo

PREFERE A FARTURA E SOSSEGO MENDIGO À INQUIETUDE MAGNÍFICA DOS PODEROSOS

Melhor me sabe na taberna a sopa,
E o tinto com a mosca e a zurrapa,
Que ao rico, que se fez senhor do mapa,
muitos anos de vinho em farta copa.

Bendita foi de Deus a escassa roupa,
Que não pesa aos ombros e os tapa;
Mais quero pouca moda e muita capa:
Que ele há ladrões de seda, não de estopa.

Encher prefiro, não enriquecer, a tripa;
O caro troco pelo que me encorpa;
Píramo me chamo, e Tisbe a minha pipa.

Descansa mais quem olha que quem trepa;
Arroto de prazer enquanto geme o lorpa,
Ele um escravo da Fortuna, e eu da cepa.

Francisco de Quevedo, B 519

 

Quevedo