Que outra realidade é mais propícia do que a actual para recordar o Timão de Shakespeare? Enojado pela perfídia e pela cobardia dos seus contemporâneos, Timão afasta-se de Atenas e vai viver, nu, para o bosque entre as bestas naturais. Não sem antes deitar um último olhar à cidade maldita, que excomunga numa diatribe célebre.
(A tradução é minha. Não sejais severos. Shakespeare é sempre sublime).
Deixa-me olhar-te, enquanto me afasto. Ó muro de pedra, Que a estes lobos cinjes, mergulha na terra, e a Atenas Não mais cerques! Mães de família, tornai-vos debochadas! Crianças, não obedeçais aos vossos pais! Escravos e tolos, Derrubai das tribunas os graves e venerandos senadores E ditai vós, em vez deles, as vossas leis! Em prostitutas Transformai-vos sem tardança, ó virgens inocentes: E fazei-o à vista dos vossos pais! Insolventes, não pagueis A quem deveis; puxai cerce das ilhargas os punhais, E cortai os pescoços aos vossos credores! Criados, roubai! Os vossos mestres generosos são ladrões respeitáveis, Que pilham à sombra da lei! Criada, ao leito do patrão, Que a patroa é uma prostituta! Escravo adolescente, arranca A bengala amolfadada das mãos do teu idoso dono, E esmaga com ela os seus miolos! Crença e religião, Piedade face aos deuses, e paz e justiça e verdade, Respeito pelos manes, sono descansado, boa vizinhança, Instrução, maneiras, artes e ofícios e negócios, Observâncias, prestígio, costumes e decretos, Fazei com que se fundam em tudo o que é contrário, E que a confusão reine suprema! Que as pragas Caiam sobre Atenas, e que esta tombe sob os golpes De potentes febres infecciosas! E tu, ó gélida ciática, Aflije os nossos senadores, que as suas pernas lhes Vacilem como as suas maneiras! Que a libertinagem E a luxúria penetrem a mente e os ossos juvenis! Que os jovens resistam e combatam os impulsos da virtude E se afoguem no deboche! Que as pústulas da sífilis Marquem os ventres de Atenas, e semeiem uma lepra Universal! Que hálitos infestem hálitos. Que a amizade E a convivência sejam puro veneno! Nada teu terei, Salvo esta nudez, ó cidade entre todas detestável. Leva-a também, e que esta maldição cresça contigo! Timão vai para o bosque, e nele encontrará por certo Animais selvagens bem mais brandos que os humanos! Os deuses confundam – oiçam-me, ó gentis divindades! – Os Atenienses, os que habitam dentro e fora deste muro. E que, enquanto Timão cresce, cresça também O seu ódio a toda a raça humana, alta e baixa! Amém. (Shakespeare, Timão de Atenas, acto IV, cena 1.)