Imortalidade V

Estamos sentados na esplanada do ex-D. Manuel, a lua recortada contra o céu escuro por cima do ex-Hotel Tocaio. Na Bila por estes dias tudo se tornou o ex de qualquer outra coisa que não existe mais, que nos abandonou. O meu amigo A. acende mais um Marlboro. Tenho saudades do aroma do tabaco e da carícia do fumo dentro das entranhas. Divago. O tempo passa. A lua vai-se deslocando imperceptivelmente no céu da Avenida, traçando o seu percurso solitário ao longo da banda estreita do Zodíaco. Ocorre-me de repente que esta lua não passará nunca.

– Sabes, digo a A., não há morte. Eu não morrerei. Viver quer dizer existir, e a morte é a não-existência. Uma impossibilidade para quem existe, como eu, que existo agora mesmo. Da existência não se produz a não-existência e vice-versa. Logo, eu sou vivo para sempre. Imortal.

A. dá uma fumarada no cigarro, e exclama:

– Arrump counff.

O que ele quis dizer foi “é uma impossibilidade, concedo.” O meu amigo A. abrevia, quando está comigo, as suas elocuções, usando uma espécie de estenografia oral. ‘Arrump’ significa ‘impossível’ e ‘counff’ quer dizer ‘de facto’. Muitos anos de convivência entre nós permitem-nos comunicar desta forma sintética, mas de uma eficácia eloquente. O estimado leitor terá de se amanhar com a minha tradução, na qual, como sempre que se traduz, algo se perde do sentido original. Entre parêntesis está o que efectivamente dissemos.

O diálogo prosseguiu.

Eu: – Logo, a morte é uma ilusão. (Murf arg.)

A: – E esta lua nunca desliza no céu. (Cuf cuf.)

Eu: – É a lua anti-Heraclito. (Inf kruum)

A: – Heidegger tem razão, Sein e Zeit são o mesmo. (Hei tshuff)

Eu: – Alguma coisa se perdeu quando os gregos reduziram o Ser ao ser presente, pois o presente não existe. O presente é o instante. Infinitésimo. (glorb bas tuk)

A: – Não existe o instante, apenas a continuidade do tempo, como uma fita de Moebius. (Thss lunng)

Eu: – O Ser é uma esfera perfeita. (Aum um)

A: – Bebes uma bejeca? (Oi?)

Infelizmente não posso, por razões médicas. Mas a lua não saiu do céu, do seu lugar por cima do ex-Hotel Tocaio, e amanhã cá estará de novo. E o Hotel também. A lua, essa moeda prateada de um valor incalculável, Nyarlathotep.

Nyarlathotep, teu nome é Plenitude e eu sou teu filho.

Amén. (Aim)

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Monta a morte a sua corte

04330CFB-4AAE-4D26-BF17-789A21FEAC96Ricardo II (falando com o Duque de Aumerle):

Falemos de campas, de vermes, de epitáfios;
Façamos do pó papel, e com olhos rasos d’água
Ditemos lamentações ao ventre duro da terra,
Escolhamos executores, discorramos de legados:
E nem mesmo disso, pois que podemos nós legar
Excepto ao solo os nossos restos despojados?
As terras, até as vidas, tudo é de Bolingbroke,
E a nada, salvo à morte, chamemos de coisa nossa,
Ou a esse pequeno monte de terra estéril
Que servirá de veste mole dos nossos ossos.
Por Deus, sentemo-nos aqui mesmo, neste chão,
Da morte de reis contemos a triste história;
Alguns depostos; outros partidos na guerra,
Ou perseguidos pelo espectro dos que dizimaram;
Envenenados por mulheres; mortos no sono;
Todos assassinados: pois dentro da oca coroa
Que cerca as têmporas mortais de um rei
Monta a Morte a sua corte e nela toma assento,
Do homem escarnecendo, rindo da sua pompa,
Deixando-lhe tão só um suspiro, uma breve cena,
Para reinar, ser temido, matar com pose altiva,
E inchando-o assim de prosápia e vã vaidade,
Como se a carne que empareda a nossa vida
Fosse bronze inexpugnável, e, dest’arte divertida,
A nós por fim chegando e com pequena agulha
Rebentando a muralha do castelo e … era uma vez um rei!

(William Shakespeare, Ricardo II, Acto 3, cena 2. Tradução minha)

A minha filosofia

O que eu vejo é o que É. Quem não me conhece do dia-a-dia julga, erradamente, que o meu mundo é o das palavras e ideias. Mas não, amigos, não – tal impressão vossa é uma ilusão criada por este meio palavroso em que nos roçamos uns nos outros. Porque eu não me passeio com uma máquina fotográfica por todo o lado a fixar o que vejo para a eternidade, então resta-me falar e escrever. Fotografo com o que posso, as palavras. Descrevo como sei. Tivesse eu jeito para fotografar, isto é, para apontar e “ver”, como certas pessoas que conheço, e eu juro-vos que já teria comprado uma Leica das pequenas e poria a summicron a botar fogo. Mas assim não. Tenho vergonha, encolho-me. O que por aqui fui fixando no dia de hoje foi aberrante, excepcional, o resultado de uma vagabundagem matinal e ociosa pelas modestas ruas e vielas de Sabrosa, à espera de algo que o ar fresco fazia anunciar e que eu não sabia muito bem o que seria.

Mas o que eu vejo, repito, é o que para mim É. O ser revela-se-me nas coisas visíveis e concretas, nas formas, nos volumes, nas sombras, nas cores, nos contornos do que se mostra e do que se oculta. Uma árvore, por exemplo, “é” porque se ergue contra a pesadume e nos revela o eixo vertical do mundo. Uma parede “é” também, tal como uma árvore “é“, mas é de um “ser” diferente, que eu talvez caracterize como residindo na sua dureza, na sua opacidade, nas cicatrizes que colecciona na quase eternidade da sua persistência imóvel, na rudeza da textura que nos mostra, nos limites que impõe ao espaço, e finalmente, mas não derradeiramente, no convite que nos faz a que a contornemos e vejamos o que está do outro lado. Do SEU outro lado, note-se, um lado que não existiria se não fosse por ela. E, do mesmo modo, “são” as ruas das aldeias e das cidades, e são-no com um modo de ser particularmente intenso e peremptório, porque é nelas que se juntam as nossas vidas todas, as nossas vidas tão diversas, as nossas vidas tantas, tão cheias de tudo e nada. Tão nossas, tão NÓS.

Por exemplo, olhai para esta fotografia. Reparai no bulício – sim, não vos estou a enganar – reparai no bulício das pessoas que não se vêem, mas que estão lá, ainda que invisíveis, nas pessoas que passaram por lá há um instante atrás, e que a câmara fotográfica se atrasou a registar, ou que irão estar lá não tarda nada, nas pessoas que, em suma, estão realmente lá, como sabeis muito bem e vedes claramente, nas pessoas que nunca lá deixarão de estar, porque este é um lugar ocupado e não deserto, um lugar constantemente cruzado por gente. Um lugar vivido. Reparai depois na sua complexidade, na sua complicação, no seu caos tão anti-Le Corbusier, tão real e tão autêntico, e não meramente ficcional como o daquele, reparai nos diferentes níveis, nos múltiplos planos, nas distâncias e nas proximidades, nos pequenos recantos, nas curvas, nas protuberâncias, nas alturas e nas baixezas, no próximo e no distante, no aqui e no acolá, no luminoso e no sombrio. E reparai também nos humildes objectos utilitários, na quinquilharia urbana enfim, nos sinais de trânsito, no candeeiro, na antena de televisão, na caixa de electricidade na parede junto à ombreira de pedra da porta, no fio agressivo da EDP que sobrevoa a rua e liga, de certa maneira, as casas entre si.

Isto é o que existe para mim, isto é o SER. Esta é a minha filosofia. E cabe, pobre dela, numa simples foto.

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Sopa de espigos

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Todas as vilas e aldeias portuguesas de alguma expressão económica e populacional têm um mercado tradicional, vindo da noite dos tempos, onde se podem vender e comprar alimentos e outras cousas necessárias à sobrevivência do corpo, como sejam roupagens contrafeitas, panos para limpar todas as nódoas, loiça de barro grosseiro ou fancaria de uso culinário. A minha Bila não é excepção. Nela o mercado funciona no centro da cidade, um recinto térreo construído naquele estilo inconfundível do modernismo à Estado Novo dos anos cinquenta, e apertado entre ruas de nomes sérios, como a rua de Santa Sofia, que suponho referir-se, não à igreja de Constantinopla, mas à mártir cristã que foi mãe de três meninas, de seu nome Fé, Esperança e Caridade, e santa protectora das viúvas, muito boa para as pústulas e a carne viva, ou, do lado oposto do mercado, a rua de Gonçalo Cristóvão, um abastado fidalgo tripeiro que foi vítima, como tantos outros, da perfídia e da inveja do Marquês de Pombal.

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No Hospital

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I

Nos primeiros dois dias a dor cresceu devagar, mas não atribuiu importância ao facto. Dores destas tendem a aumentar, mas o organismo reage, faz o seu trabalho e regenera-se. Deixou, por isso, andar. Aguentou. Ao terceiro dia, porém, a dor crescera para além do expectável. No quarto dia tremia pela casa fora, abstendo-se de sair à rua com medo de colapsar. Por volta das cinco da tarde, rendeu-se. Enfiou as calças e um par de sapatos por cima das peúgas de lã, envolveu o corpo num casacão quente e tudo isto num anoraque cinzento escuro, meteu-se no carro e partiu, aos solavancos e com um terror velado na alma, para o hospital local. Um enorme edifício de sete andares, um paralelepípedo meio arruinado de tijolo desbotado e alumínio incaracterístico, uma antecâmara do Hades que se chamava pomposamente Hospital Distrital e que a população da pequena cidade de província ia odiando em golfadas de impotência, sem se atrever a confessar, por medo de represálias, o sentimento em voz alta. Porque não havia outro hospital na cidade, nenhum Póvoa ou Trofa, nenhum privado. Só havia aquela monstruosidade, que era importante não atiçar, esconjurando-o ou chamando-lhe nomes feios. Isso podia pô-lo de mau humor.

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Nós, os vivos

São dez da manhã deste sábado, dia 15 de Agosto, dia santo de nossa senhora. Estou no mini-mercado do bairro, numa pequena fila junto da caixa, à espera para pagar meia dúzia de carcassas de pão pré-embalado. Dois lugares à minha frente está uma cadeira de bebé, onde um pequeno ocupante de pouco mais de um ano me fita com uma cara redonda e pensativa. Um outro miúdo, mais velho, perfila-se ao lado da cadeira, em posição de guarda relutante. A mãe, uma mulher com aspecto pesado e com aquela rotundidade de figura que resulta das gravidezes repetidas, anda pelas prateleiras próximas a escolher vitualhas de última hora, um olho nas prateleiras, o outro nos petizes.

Quando eu entrara no mercado, apenas um minuto antes, ouvia-se nele uma choradeira miudinha e pertinaz, naquela mistura de gemido de gato e de toque de sirene que os bebés utilizam para exigir nem eles sabem bem o quê. Como a cadeira estava de costas para a entrada, eu não vislumbrara inicialmente o seu ocupante. Mas um senhor inclinava-se em genuflexão imperfeita diante da cadeira, agitando a centímetros da cara do bebé um punho fechado e dizendo: ‘olha que levas, olha que levas’, uma expressão de divertimento mal disfarçado a escorrer de um rosto escuro e enrugado. Olha que levas. O irmão mais velho em expectativa. A mãe, noto-o depois, pergunta ao senhor do punho fechado pelas latas de grão-de-bico. ‘Que queres, ein?, olha que levas! Na outra prateleira, dona Paula, aí em baixo, à sua esquerda.’ O miúdo cala-se.

Mas isso foi há uns instantes atrás. Estou agora na fila diante da caixa, o saco de pão na mão, o bebé na cadeira à minha frente inclinando a cabecinha, olhando para mim, a expressão fechada e impassível. Outra mãe aproxima-se, empurrando, não uma cadeira, mas um carrinho com cobertura de fole, e nele um bebé de meses embrulhado em mantas, os olhos bem despertos. A fila reorganiza-se obediente, abre um espaço, a mamã recém-chegada estaciona o carrinho junto à cadeira, as duas mulheres, que imagino amigas ou vizinhas, ambas inchadas pelo esforço de maternidade, conversam em voz baixa, a da cadeira paga as mercearias, a outra esforça-se por abrir um porta-moedas no meio de uma confusão de sacos de plástico, de guizos e de apetrechos de bebé.

De onde estou, tenho uma visão frontal e desempedida dos dois pequenos espécimes humanos que me olham. Há um cheiro de vómito, ao mesmo tempo acre e doce. Olham-me com grandes olhos, sem uma ruga, sem um piscar de pálpebras. Olham-me e eu olho-os. Passam-se segundos. O tempo espessa-se como uma baba grumosa e branca. Vem dos seus olhos, dos seus rostos, das suas pequeninas bocas rosadas, na minha direcção.

Há um número infinito de possíveis seres humanos que nunca nasceram e nunca nascerão. Felizes por isso, para além do que os vivos podem imaginar. Com a sorte de não serem. Não é o caso destes dois, no seu carrinho, na sua cadeirinha. Ou da meia dúzia de adultos que se aglomeram à volta da caixa nesta pequena mercearia de bairro. Nós, e estes bebés acabados de chegar à existência, estamos aqui, feitos, existentes, sem recurso e sem possibilidade de voltar atrás. Sofredores. Estamos aqui, para além da remissão.

A vida é um mar de sofrimentos, um oceano a perder de vista de males e de torturas, apenas percorrido de onde em onde por prazeres espasmódicos e evanescentes. Lembro-me do dito talmúdico que Freud cita algures: “a vida é tão terrível que seria melhor não ter nascido. Mas quem tem essa sorte? Nem um só, ai de nós, entre cem mil.” O meu lamento por aquelas duas criaturas, prístinas e inocentes, quase me afoga. Pago os pães, sem reparar no que faço, sem querer saber do troco. Cá fora, no passeio, as duas mamãs reorganizam-se, afastam-se em conversa, ignaras do pecado terrível de que foram cúmplices.

Eu, pela minha parte, atravesso a rua em grandes passadas. Viro para sul. Caminho e ranjo intimamente, alheio ao sol que se derrama sobre mim e sobre os vivos, ao sol glabro como a cabeça e a pele de um bebé, ao sol que se ri, em silêncio e como que para dentro, de uma bela piada, insana, cheia de som e fúria, significando nada.

Coros do bucho do tempo

A Coisa

[Um texto de Desidério Peixoto, escrito à hora do almoço numa tasquinha do Bairro Alto, num dia cinzento de Inverno]

Dou-lhe este nome, à falta de outro melhor. Poderia chamar-lhe repulsa, ou fuga, ou recusa, ou medo, ou abafação, ou, o que seria porventura o mais próximo dos nomes, estranheza. Mas a verdade é que a Coisa não é nenhum deles, tendo ao mesmo tempo um pouco da cada um, numa mistura que é diferente e mais do que a soma de todos.

Conheço a Coisa desde tempos imemoriais. Desde que as mulheres, então simples raparigas, começaram a ser algo de especial para mim, e não apenas pessoas comuns na paisagem ordinária, que a Coisa me visita com regularidade. Chega sem aviso prévio, sempre rápida e de forma decisiva. Limpa, como um cirurgião do coração que corta com a consciência da delicadeza e da necessidade do golpe. A Coisa, um bisturi do sentimento.

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Gaudium in finem

A existência ou faz sentido ou não faz sentido nenhum. Confrontado por estas duas alternativas, o humano apressado escolherá, quase sem se quedar a ponderar, a primeira. ‘Prefiro,’ diz-nos com a expressão de quem se enfada em apontar o óbvio, ‘o sentido.’

Mas engana-se amargamente. Um sentido, seja ele qual for, radioso ou sinistro, é, existe para todo o sempre, ocupa literalmente a extensão da eternidade. Preenche os éons sem fim. E, por mais leve que pareça no inicio, ganha aos poucos um peso insuportável. Ao contrário de Sísifo, que descansava por momentos sempre que a pedra deslizava para o fundo da colina, o sentido é um pedregulho que seremos condenados a arrastar por uma estrada a perder de vista. Para todo o sempre.

Que a existência faça sentido, isso é o que me inspira o maior terror. Perante ele, todos os medos se apoucam. Porque se acabam um dia.

Não quero estrada para além da curva da estrada.  Gaudium in finem.

O Último Messias

O Último Messias

Peter Wessel Zapffe (1899-1990) foi um filósofo norueguês relativamente desconhecido. É dele o ensaio que se apresenta a seguir, publicado em 1933 no número 9 da revista Janus. Discípulo de Schopenhauer e de Nietzsche, Zapffe exprime aqui, num estilo semi-poético e menos formal do que é habitual entre filósofos, o que entende ser a estrutura fundamental da existência humana.

Tanto quanto sei, trata-se da primeira tradução portuguesa, feita a partir da tradução de Gisle R. Tangenes para inglês.

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Sobre a perversidade moral das políticas de natalidade

Muita gente — gente da vida política, mas não só — refere, volta e meia, a necessidade de inverter em Portugal o que chamam a decadência demográfica resultante da quebra da natalidade. Trata-se, sem excepção, de um discurso consensual no diagnóstico, o qual, uma vez produzido, só é objectado pelos que, por dever de renitência, objectam ao que é dito ou proposto pelos políticos ou homens públicos com que não simpatizam. No tratamento, as opiniões naturalmente vão divergindo.

Mas nunca vi ou ouvi ninguém objectar ao diagnóstico e às panaceias por razões morais. Ora, parece-me evidente que a proposta de contrariar o declínio demográfico é eticamente condenável. Expliquemos porquê.

Em termos gerais, esta proposta é um incentivo à natalidade, isto é, à produção de mais seres humanos, especificamente de mais seres humanos do que os que vêm sendo produzidos (os quais são considerados em número insuficiente). Ora, esta proposta de produção de novos seres humanos (sejam eles quais forem, mas no caso vertente, de seres humanos portugueses) é feita por seres humanos existentes, os quais usam, para fundamentar a bondade da mesma, argumentos de conveniência para eles próprios e não para os seres humanos futuros que propõem que sejam produzidos. O que é, não só uma manifestação do mais puro egoísmo, mas um acto de instrumentalização da vida humana, de ‘coisificação’ do humano. Por isto, esta proposta é eticamente condenável.

Para que a proposta tivesse justificação moral, seria necessário demonstrar em alternativa:

(a) ou que os seres humanos futuros a produzir são beneficiários brutos da existência a que advêm, isto é, que a produção de um novo ser humano é um bem absoluto para ele, e não apenas para quem o produz;

(b) ou, numa perspectiva estritamente calculatória, que, mesmo que a demonstração de (a) não seja possível — e não é, antes pelo contrário, como se mostrará a seguir — os seres humanos já existentes em cada momento (digamos, para facilitar o raciocínio, os seres humanos existentes em cada geração) obtêm um benefício in toto, ao procriar, maior do que o prejuízo, também ele in toto, que recai sobre os que são por eles procriados. Isto é, e em suma, que a totalidade da felicidade existente no mundo (ou num dado país ou comunidade humana) é proporcional ao número de seres humanos existentes.

Consideremos a seguir as duas alternativas.

A)

Pode demonstrar-se que a existência [a ‘sua’ existência] é, para qualquer ser humano individual, um mal absoluto e não um bem. Que isto é assim não é só válido para os que têm existências miseráveis, como é o caso de incontáveis humanos existentes no planeta actualmente, e que são, digamo-lo sem correr o risco de pessimismo infundado, provavelmente a maioria. É válido para todos e cada um dos seres humanos existentes, ricos ou pobres, saudáveis ou doentes, belos ou feios. É válido mesmo para aqueles, muito poucos, que têm existências privilegiadas.

Não se tome o que acabámos de escrever por um paradoxo. Não é tal; é, bem pelo contrário, uma constatação que todos nós somos capazes de fazer, desde que pensemos minimamente no facto da [nossa] existência, desde que pensemos nela com a frieza e distância necessárias, sem nos deixarmos contaminar nesta nossa reflexão pela circunstância de existirmos aqui e agora, isto é, desde que pensemos a partir da perspectiva apropriada, que é a de compararmos, não a nossa existência actual com a nossa inexistência futura, mas o dado bruto da nossa (hipotética) inexistência original (o podermos nunca ter nascido) com o dado bruto da nossa existência actual (o existirmos aqui e agora). Esta constatação é, aliás, feita expressamente pela maioria das religiões, com excepção do cristianismo vigente e do islamismo dele derivado. É feita pelas religiões orientais — indus, búdicas e sínicas — e pelo judaísmo. A excepção é, como se disse, o cristianismo posterior ao século II, que se tornou uma religião do Estado Romano, ele mesmo a braços com uma crise demográfica profunda, tendo, por causa disso e para legitimar uma posição pró-natalista vantajosa para os poderes fáticos e para o seu próprio crescimento demográfico, de eliminar as correntes gnósticas anti-natalistas que estiveram na sua origem. A mesma opinião sobre a negatividade da existência é igualmente característica das correntes filosóficas hedonistas e estóicas da antiguidade, dominantes no pensamento filosófico entre os séculos III A.C. e III D.C.

Benatar

Que a maioria das religiões e das filosofias nascidas no mundo clássico o constate, significa pois que, longe de ser uma aberração, esta perspectiva é lógica e baseada na compreensão intuitiva da estrutura da existência.

Mas que a existência é um mal absoluto, pode demonstrar-se formalmente, e não só por recurso à experiência religiosa e filosófica da humanidade. Para os interessados, recomendo uma demonstração a meu ver irrefutável (ou pelo menos não refutada — podem crer que muitos pesos pesados da filosofia já partiram o dente na coisa) dada pelo filósofo David Benatar, no seu livro “Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence” (Oxford University Press, 2008).

Note-se, para concluir este ponto, que não vale argumentar com o facto evidente de os seres humanos existentes terem relutância em pôr termo à sua vida e considerarem geralmente a sua não-existência futura — a sua morte — como uma coisa negativa. Porque, à parte o facto de sermos biologicamente determinados a preferir a preservação à aniquilação, o que está em causa aqui não é a comparação entre a vida actual e uma não-vida futura, que é o que cada existente  tem em vista quando pensa na sua morte, mas entre duas alternativas ontológicas prévias e originais: a de vir à existência versus a de nunca ter existido. A propósito, a célebre boutade hamletiana: ‘to be or not to be’, diz respeito ao primeiro caso, o do suicídio, e não a este último, que, repita-se, é o fundamental e o que está aqui em causa. Pela mesma razão, não vale dizer-se — e muita gente com quem falo deste assunto argumenta assim espontaneamente, sem se aperceber que se está a colocar ipso facto num plano diferente e irrelevante para a coisa a discutir — que se acha a sua vida actual uma coisa boa, que até se é feliz, etc. Não só os seres humanos vêm à existência equipados com um conjunto de mecanismos psico-biológicos, isto é, construídos pelo processo evolucionário, que enviesam as apreciações, fazendo-os acreditar que a sua vida é melhor do que na realidade é (um viés repetida e abundantemente demonstrado em estudos científicos), mas pode demonstrar-se formalmente (ver a obra de Benatar acima referida) que mesmo a vida mais feliz possível é sempre e necessariamente inferior à não-existência.

B)

Sobre este ponto, o argumento pró-natalista é o seguinte: mesmo que se aceite que é melhor não existir, a verdade é que, para os vivos actuais, é melhor ter filhos que não ter, e que, reportando-nos agora a título de exemplo à sociedade portuguesa actual, é melhor assegurar descendentes (por razões de sustentabilidade social e económica, etc.) que deixar a sociedade escorregar para a senelescência. No plano socio-económico, esta opinião, relativa à sustentabilidade económica, é muito provavelmente defensável. Mas pode este argumento ser usado para justificar eticamente o apelo à natalidade? Na nossa opinião, não, e por três razões fundamentais.

Em primeiro lugar, se nos colocarmos numa perspectiva puramente calculatória, de grandes números, seria necessário demonstrar que, para cada geração futura, o ganho em felicidade total obtido pelos vivos pré-existentes pela produção de novos seres humanos seria superior à perda de felicidade total dos vivos entretanto trazidos à existência. Ora, como toda a existência é um mal, é possível — talvez mesmo provável —que qualquer ganho adicional para os já-existentes pelo facto de se produzir novos existentes seja inferior ao mal bruto resultante dessas mesmas novas existências. Mais concretamente, seria necessário demonstrar que, em cada geração:

∆ Fpré-existentes > ∆ Inovos-nados, em que:

∆ F é o acréscimo de felicidade obtido pelos pré-existentes, pelo facto de terem dado à existência novos seres humanos e

∆ I é o acréscimo de infelicidade bruta dos novos-nados trazidos à existência por esses pré-existentes.

Em suma, seria necessário demonstrar que, em cada geração, a quantidade total de felicidade é proporcional ao número de existentes. Ora, dado que toda e qualquer existência é, em si-mesma, um mal absoluto, e portanto, um componente sempre negativo para o cálculo da felicidade, tal demonstração parece problemática.

Adicionalmente, note-se que o argumento anterior implica, se tomado a sério, a perpetuação da existência humana, uma vez que cada geração se sentiria impelida, por cálculo egoísta, a produzir novos seres humanos incessantemente e para seu exclusivo bel-prazer. Ora, como toda a existência humana, per (A), é um mal absoluto, o argumento só pode, em última análise, perpetuar o mal.

Finalmente, e isto parece-me eticamente decisivo, é óbvio que o argumento (b), apresentado pelos já-existentes em nome dos já-existentes (deles mesmos, antes de mais, e dos seus descendentes já vivos), repousa num ponto de vista exclusivamente egoísta, e não pode nunca invocar, para se legitimar, os interesses de uma qualquer descendência hipotética ou dos vivos futuros (os quais, aliás, não existindo ainda, ‘estariam’ individualmente melhor se nunca tivessem vindo à existência). Se se disser, por exemplo, que os portugueses daqui a 30 anos estarão melhor se os actuais casais em idade de procriação tiverem muitos filhos, o que se está a dizer é, essencialmente, que cada português actual em idade de procriação ficará pessoalmente melhor se tiver filhos. O que é evidentemente um argumento puramente egoísta e instrumentalizador, e portanto, não-ético, ou mesmo anti-ético.

Como se vê, nem (a) nem (b) são sustentáveis. Muito pelo contrário, representam duas faces da mesma posição profundamente egoísta e instrumentalizadora (‘coisificadora’) do humano e portanto eticamente condenável. Que os indivíduos, habitando no seu dia-a-dia a esfera do egoísmo psico-biológico, queiram ter filhos, entende-se. Que os políticos e os opinion-makers caucionem, pela ausência de reflexão séria e filosoficamente fundamentada, este mesmo egoísmo, também se compreende. Embora menos.

E lamenta-se.