Mircea Eliade em Viseu

Mircea Eliade deixou um Diário Português, escrito durante os anos de 1941 a 1945, quando por cá andou vestido de Adido Cultural. Recentemente publicado em várias línguas, deixo-vos aqui um extracto deste diário, não datado, mas que é certamente do Verão de 1941. Nele, Mircea Eliade passeia-se pelo centro do país, inicialmente pelo Buçaco e Luso, depois por Viseu, onde visita a Sé e o Museu Grão-Vasco. A tradução é da minha responsabilidade.

Nota: há uma edição portuguesa da obra, pela editora Guerra e Paz (Lisboa, 2008), que custa apenas cinco euros. O texto que aqui apresento não faz, porém, parte da edição portuguesa. O que é pena. Mas, ainda assim, o livro em português vale bem a pena. Ide comprar.

[Verão de 1941]

Buçaco

Deixei a janela aberta. Lá muito ao longe, para além da floresta no vale, pode ver-se a chama de um incêndio. Um aguaceiro fino. O ar da montanha, à noite, quando a chuva começa a cair.

Atiro-me para cima da cama. Tento memorizar duas estrofes do soneto de Camões Alma minha gentil, mas leio com um desencorajamento crescente, sabendo, como sei, que é algo impossível para mim. Nunca consegui memorizar mais do que três ou quatro estrofes de um poema, por maior esforço que faça. E a segunda estrofe parece-me menos bela que a primeira.

Lembro-me de uma noite que passei, há muito tempo, em Allahabad, como convidado do Major Basu. Estava então, como estou hoje, só; choviscava, um pouco frio (as noites de Janeiro na Índia Central — e a minha grande naïveté de viajar vestido para a Primavera). O velho Major Basu dera-me nesse dia um livro de impressões de uma viagem que fizera pela Europa em 1880. Uma edição modesta, de província, feita na sua própria pequena imprensa em Allahabad. Julgo que ainda devo ter esse livro em qualquer parte, encadernado a um tecido verde sujo: Viagens de um Indiano pela Europa, penso que era assim que se chamava. Lembro-me que fiquei acordado nessa noite até bastante tarde, a lê-lo. E que não podia entender como um homem tão inteligente e culto como o meu Major Basu mencionava no seu livro coisas de tão pouco interesse, lugares-comuns que se encontram em qualquer manual de história ou geografia: a população de cada país, os nomes dos rios principais, o tamanho e a actividade dos portos.

Muito tarde, já depois da meia-noite, alguém bateu levemente à minha porta. Era o velho Major Basu, em pessoa, enrolado numa manta. Alguém na casa notara a luz acesa e acordara-o. E ali estava ele de pé à porta, timidamente, vendo que eu estava a ler — e o seu livro, ainda por cima! Pareceu-me querer dizer algo, porque várias vezes pensei que ia começar a falar. Por fim, quando eu ia tentar fazer um qualquer comentário elogioso, saudou-me com uma cortesia exagerada e despediu-se. No dia seguinte aparentou ter esquecido a visita completamente.

Não sei porque me lembrei de tudo isto e porque senti que precisava de o escrever aqui, neste quarto de hotel no Buçaco. Talvez porque esteja a chover e faça frio. Talvez porque eu espere que se abra a porta e apareça alguém que, admirado, olhe para mim demoradamente, oiça as escassas frases que eu, sem dúvida, terei a dizer sobre este volume que seguro nas mãos — e, finalmente, desapareça, em silêncio, na escuridão, com passos tão suaves como veludo, antes de eu conseguir ver bem o seu rosto.

Luso

Há casas velhas com fundações de granito, com telhados de telhas verdes e janelas minúsculas que parecem desenhadas para um teatro de marionetes, paredes meias com este hotel grandioso e moderno, que parece um solário, e que, embaraçado, evita olhar para todas as casas que, antes de ele ser erguido, constituam o verdadeiro Luso: fontes, umas poucas pensões familiares, o restaurante com a sua sala de bilhar e umas salas para festas, o passeio e o jardim públicos.

Um moinho abandonado algures. E o parque, com quiosques, terraços, cascalho. Ninguém se passeia agora junto do lago de onde, com um borbulhar gentil, brota a água do Luso, embora as flores ainda estejam frescas, a relva tenra, e as árvores verdes como sempre. Uma estância turística de Verão depois da partida do último veraneante.

Percebo agora a onda de melancolia que senti tentar-me permanentemente desde que cheguei ao Luso. Encontro aqui a nostalgia por aquele paraíso perdido dos mundos que já morreram: estâncias balneares do tempo dos meus pais, essa vida meio real que apenas durava os meses de Verão; amigos, idílios, passeios solitários, e a música marcial das tardes de domingo no coreto no meio do parque; festas, danças, lanternas de papel, confetes.

[Ramalho Ortigão]

Entre os muitos livros à espera de ser lidos estão dois volumes de Ramalho Ortigão, “a Ramalhal figura”, como Eça de Queiroz lhe chamava. Ramalho Ortigão escreveu, entre muitos outros, dois curiosos volumes que em conjunto constituem uma espécie de “Guia para o Visitante de Banhos e para o Viajante Acidental” e que contêm todo o tipo de informações úteis e específicas: horários de comboios, preços de hotéis, detalhes sobre os próprios banhos, sobre os médicos, e especialidades culinárias. Os livros intitulam-se, respectivamente, Banhos de caldas e aguas mineraes (1875) e As praias de Portugal (1876). Parecem invadidos por um entusiasmo ilimitado e quase fanático pelas possibilidades da ciência, e especialmente da medicina e da balneologia. Os seus guias turísticos e balneológicos são considerados, hoje, como a principal fonte de documentação sobre a vida social de há três quartos de século atrás.

Viseu

Passamos por um grande átrio, o antigo refeitório episcopal, com azulejos maravilhosos: Alexandre o Grande, Tito, Vespasiano; o mesmo azul distinto e brilhante, que temos de aprender a apreciar.

De uma janela, uma vista de toda a cidade, aninhada entre colinas arborizadas. Carvalhos, pinheiros e sobreiros descem quase até ao campo dos toiros, construído recentemente na periferia de Viseu. Casas de um vermelho de tijolo todo idêntico, com telhas vermelhas ou castanhas. Um punhado de vivendas brancas, com janelas da cor do granito molhado, e que parecem fora de sítio neste reino em tons de barro.

Quão bela é esta rua vista desde a base da catedral, que desliza de parede em parede, sustentada a intervalos pelas fundações ou pelas esquinas das casas, e muda abruptamente de direcção, desaparecendo por fim numa confusão de telhados, muito ao longe, no coração da cidade.

Sé de Viseu

Antes de entrar no Museu

Admitamo-lo: nenhum lugar nos entra no sangue e na memória se não passearmos por ele sem pressa, sem pensamentos precisos, sem tentarmos reconstituir a sua história. Tomemos, por exemplo, esta ampla praça em frente da catedral, da qual, por agora, nada sei, embora esteja certo que está carregada de história. Com que melancolia a lembrarei eu sempre, apenas porque caminhei por ela devagar, olhando constantemente para cima e observando os contrafortes da catedral, os seus beirais antigos, as suas janelas…

A primeira coisa que vejo na Catedral são os nós manuelinos envolvendo os arcos. Este detalhe parece despertar o meu interesse. Começo a olhar de uma forma mais amigável para esta vasta catedral, com a sua nudez ascética, porém calorosa, íntima.

O jovem com face e penteado proletários, vestido pobremente, tem estado a olhar há algum tempo para o altar. Ajoelha-se agora, um pouco timidamente, e começa a rezar.

E há as duas mulheres, senhoras idosas, que sem dúvida nos observaram quando entrámos, e nos mantiveram debaixo de olho, seguindo-nos com uma malícia muda enquanto recitavam as suas orações e faziam deslizar calmamente as contas dos seus terços.

O abade conduz-nos  para a grande escadaria que leva ao coro. De cima, a catedral adquire maior profundidade e parece ter uma luz diferente. É outra atmosfera, um espaço menos exacto, como se essas colunas de granito tivessem adquirido uma estranha e musical animação.

Mas o que é verdadeiramente extraordinário são as cadeiras do coro. As costas e os braços estão decoradas com rostos e corpos de uma beleza rara e surpreendente: diabos, quimeras, cabras, dragões, peixes e cabeças dos danados. A mão que descansou por muitos anos nas costas da cadeira arredondou o perfil do diabo, dando-lhe uma expressão ainda mais sinistra. Quão perturbadora é a cabeça daquele velho, boca semiaberta por um qualquer e ignaro gemido obsceno, com os olhos quase na testa — colocados assim tão alto para lhe permitirem ver tudo, e tão cedo quanto possível, agora que se encontra no limiar da morte. A incomparável coragem e génio do escultor que animou a madeira dura e macia das cadeiras com todos estes olhares e esgares e monstros! Os homens que se sentaram aqui, é certo, eram cheios de devoção, e  cantavam devotamente, acariciando os cornos do diabo à sua frente, ou a face estúpida e cínica de um monge culpado, ou a quimera de cauda atrevida, ou o lagarto que se ergue de repente da madeira, ou o dragão que lutou anos a fio para se destacar das costas da cadeira e procura refúgio noutro lugar.

Nenhuma imagem é exatamente igual a outra. Nenhuma expressão se repete em nenhuma destas faces que nos fitam de todos os lados. Por que milagre vieram a existir, no cadeiral do coro da catedral de Viseu, estes personagens das histórias de fadas, dos mitos e bestiários, das farsas populares e das lendas monásticas? E que irrestrito espírito de tolerância, e quanta compreensão e ironia da parte dos clérigos, que observavam enquanto estas figuras de madeira — tão tentadoras como virtudes teologais — vinham à existência debaixo do escopro do mestre!

O cadeiral do coro está cheio de surpresas, porque sobre cada cadeira, suportando uma corrente de trombetas e de algas, pende o corpo de uma mulher de abdómen nu e bem desenhado. Pergunto-me o que poderiam querer dizer — estas mulheres cujos umbigos me lembram ídolos pré-históricos, a Vénus de Willendorf ou uma outra qualquer Magna Mater euro-asiática. Nada importa que eu descubra, presos às suas costas, pares de asas de anjo. A curva protuberante dos abdómenes nus, os peitos de maturidade gloriosa e, acima de tudo, o sorriso — tão feminino, tão impenetrável — impedem-me de discernir nestes corpos essências angelicais!

Japonia

Há também, no cadeiral do coro, nas paredes, vários e curiosos painéis de madeira, elaborados à maneira japonesa. São, de facto, japoneses. Uma curiosa mistura de estilos: português colonial e japonês. Vi algures reproduções de várias obras de arte oriental — tapetes persas, faiança do extremo oriente — nos quais estão representados navios e marinheiros portugueses. Preciso de arranjar documentação sobre estas coisas.

O Museu Grão-Vasco

Existem tantos museus sobre os quais nada escrevi neste bloco-notas, que não posso deixar passar em claro o Museu do Grande Vasco Fernandes. Talvez porque, embora se intitule modestamente um “museu regional”, é um dos mais belos de Portugal — o mais belo, sem dúvida, se o das Janelas Verdes, em Lisboa, não possuísse o tríptico de Nuno Gonçalves.

Atribuem-se a este Vasco Fernandes tantas telas que, durante muito tempo, a crítica moderna acreditou que o homem era um mito. Recentemente, contudo, a sua realidade histórica foi validada de modo definitivo. E reuniram-se neste museu — localizado num edifício do século dezasseis — as suas obras principais, juntamente com telas de outros artistas do norte e muitos outros objectos preciosos, desde uma maravilhosa cruz peitoral bizantina a uma curiosa colecção moderna de aguarelas e de guaches.

O que me incomoda em quase todas as pinturas de Vasco não é o realismo com que ele trata os seus sujeitos — embora este realismo esteja, em si mesmo, carregado de mistério — mas a fealdade dos seus personagens. Do Salvador no Baptismo, aos soldados e fariseus [sic!] no extraordinário Calvário, os rostos de Vasco reflectem a mesma enorme e entranhada fealdade. Há apenas duas excepções, às quais regressarei. Mas abordo cada quadro individualmente, e descubro o génio de Vasco exprimindo-se na fealdade, como se esta fosse uma dimensão espiritual predestinada. Tomemos, por exemplo, o Calvário, a grande tela que é, sem dúvida, uma das obras-primas da arte portuguesa — pelo arrojo, pela concepção, pela hábil execução. Mas quanta fealdade nestes vinte e cinco personagens! Que faces retorcidas, que sorrisos forçados e opacos distorcem as expressões dos fariseus que lançam as sortes pelas vestes do Salvador; que perfil inchado tem aquele centurião em primeiro plano, como o de um mercador ganancioso, envolvido no seu manto vermelho, e quanta vaidade bestial nos olhos de todos os que assistem à Paixão! O ladrão não arrependido que se contorce na sua cruz, os soldados de faces assimétricas que rebentam de mediocridade e vilania; Longino, no seu cavalo branco, a lança quase a escapar da sua mão — aparentemente, o milagre está a ocorrer na sua alma — e as santas mulheres, em primeiro plano, apinhadas em torno da Mãe do Senhor, a qual desmaia enquanto as mãos se apertam melancólicas — todas estas figuras partilham a mesma fealdade amarga, sinistra ou patética, tumefactas com o sofrimento, ou exaustas com os esforços frutuosos. Porque a fealdade dos personagens de Vasco nem sempre é caricatural ou demoníaca, como os rostos pintados por Bosch ou Breughel. Na maioria dos casos, é apenas o resultado de uma vida de labores, é a falta de encanto, a opacidade e a calosidade que são o fruto de uma vida dura, o desejo de uma boa vida, a sede de poder.

A mesma postura distorce todas as demais inúmeras faces, com excepção das de São Sebastião — rodeado por executores medonhos — e São Pedro. Quase toda a gente considera esta pintura de São Pedro a  obra-prima de Vasco. É, em qualquer caso, a mais popular. O trono no qual o santo se senta assemelha-se ao imenso baldaquim de um déspota asiático. O seu manto imperial tomba em pregas opulentas sobre um chão em mosaico. Banhado em oiro, com uma tiara sumptuosa, segurando na sua mão esquerda, que descansa sobre um livro aberto, a chave encantada do Paraíso, e erguendo a direita numa bênção apostólica de terrível simplicidade — São Pedro é-nos representado como um verdadeiro Cosmocrator. Nunca, ao que parece, prodigalizou um pintor mais génio, mais oiro, e cores mais ricas para honrar a vitória da Igreja Católica Romana na figura de São Pedro: um Pedro augusto, vagamente cansado, mas no entanto apostólico. Tudo aqui o mostra como o verdadeiro senhor do mundo, como o Monarca Universal que estabelece a lei e a ordem  por todo o lado. E se eu não fosse tentado por outras reflexões sobre esta arte, tão prenhe dos segredos das descobertas marítimas — que desculpa excelente isto seria para meditações sobre o simbolismo arcaico de Melquisedeque, o Sacerdote-Rei, o Monarca Universal, o Chakravartin, aquele que se encontra no centro do mundo e gira a Roda, e através do qual todas as coisas são possíveis e adquirem existência.

São Pedro por Vasco Fernandes

Descobertas Marítimas

Vasco Fernandes, que representa as pessoas, os santos, e mesmo Jesus como ele os enxerga nos seus compatriotas regressados das ásperas viagens atlânticas, é o mais azedo dos realistas. Mas esse realismo, que caracteriza toda a escola portuguesa do tempo, é a criação, juntamente com muitas outras, do espírito da época das descobertas marítimas. Nada está mais distante do grafismo do Renascimento que esta pintura portuguesa, a qual — talvez antes dos holandeses e em qualquer caso independentemente destes — descobriu o realismo na arte. O cânone da beleza mediterrânea clássica, a custo reactualizada pela Renascença italiana através do humanismo e da cultivação do gosto clássico, nunca se tornou popular em Portugal. A época das descobertas marítimas criou aqui um cânone diferente: o do Atlântico, do mare tenebrosum. O estilo manuelino, com todos os seus segredos, com as influências exóticas e marítimas que nos invadem e perturbam, é a manifestação mais perfeita desse cânone.

Mas não menos interessante e sugestivo é o realismo dos pintores portugueses do século XVI. Porque todos estes artistas eram contemporâneos dos incríveis esforços expendidos na travessia dos oceanos e na descoberta de novos mundos. Muitos deles viveram nas colónias ao longo da costa africana. Aí viram novas paisagens, imagens alienígenas; foram apresentados a geografias perigosas, conheceram uma vida rude; a cada passo enfrentaram a morte e as doenças terríveis do Oriente, viveram a vida difícil dos marinheiros e, acima de tudo, viram homens façanhudos, que se esgotavam em esforços medonhos, enredados numa luta desencorajante com o desconhecido — homens sobrecarregados de trabalho, exauridos, bêbados de glória, de vícios, e de sentido do poder: numa palavra, homens feios. A dureza e bestialidade dos rostos pintados por Vasco Fernandes via-as ele por todo o lado nos seus contemporâneos. Não tinha maneira de vislumbrar as belezas mediterrâneas seráficas e contemplativas da Renascença italiana. Não tinha forma de preparar o seu espírito para perceber esses rostos amáveis e pacíficos. Os breves intervalos de criatividade dos portugueses eram episódios sempre situados entre essas expedições.

Exotismo

Um outro grande pintor, um contemporâneo de Grão Vasco — o “Mestre do Retábulo da Sé de Viseu”, como é chamado até que o seu nome possa ser identificado — tem toda a sua obra aqui recolhida. As influências das descobertas marítimas são, no caso do Mestre do Retábulo, ainda mais evidentes. Um dos seus quadros mais conhecidos, A Adoração dos Reis Magos, retrata um índio brasileiro como um rei negro que vem adorar o Salvador na manjedoura. Que se trata de um índio brasileiro não oferece dúvidas, pois ele prepara-se para ajoelhar no seu traje multicolorido, com anéis e um rosário de pérolas na garganta, penas de cores diversas na cabeça e uma lança de madeira. É, sem dúvida, o antecessor do exotismo na pintura europeia, o protótipo do “bom selvagem”, que, durante mais de dois séculos, iria obcecar a imaginação dos escritores e moralistas continentais.

Portugal pode orgulhar-se de ser o precursor do exotismo e de toda a literatura romântica. Não foi Camões o primeiro europeu a exaltar uma escrava indiana, Bárbara, como a “cativa que me tem cativo”? O poema, “Aquela cattiva”, no qual a pele escura (pretidão de amor) é elevada acima da beleza loira, abriu o caminho a toda uma literatura exótica, promovida triunfalmente pelo romantismo. Não por acaso era Chateaubriand tão cioso d’”Aquela cattiva”, na qual ele pensou encontrar a validação da paixão pelas nada sofisticadas belezas não-europeias que provinham de geografias que o seu fervor e o de outros românticos assimilavam ao Paraíso.

Assim começam todas as correntes mais tardes populares, e assim se iniciam todas as modas e todo o snobismo de massas, seja este o de um grande poeta ou o de um grande pintor. Porque a moda que começou a ser popular depois de 1920, a das belezas bronzeadas, de pele escura, a moda que levou os jovens dos continentes brancos a “enegrecerem-se”, ou pelo menos a “bronzearem-se”, por todos os meios possíveis, é um sério desvio dos cânones de beleza mediterrâneos ou nórdicos que enaltecem a loira Helena e as belas donzelas com cabelos de oiro, Blanchefleur ou Margareta. É verdade que a moda da pele escura invadiu a Europa ao mesmo tempo que a música negra e o jazz. Mas as suas origens estão no Romantismo e na pretidão do amor de Camões. Várias centenas de anos teriam de passar antes de não só se tornar aceitável pelas elites da Europa e da América, mas ser de facto promovida pela arte, pela filosofia e pelos desportos dos dois continentes. A “revolta contra a pele branca” é, obviamente, complexa. Podem também encontrar-se nela elementos proletários — a revolta contra a aristocracia e contra os cânones clássicos. Mas o que é o “proletariado” dos admiráveis sonhadores do século passado se não “le bon sauvage” de Rousseau, multiplicado até se tornar uma colectividade? E não haverá, porventura, uma qualquer relação entre a apologia do “primitivo” dos séculos dezoito e dezanove e o messianismo do proletariado elaborado pelos ideólogos do socialismo nos últimos cem anos?

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